"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 30 de abril de 2010

RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles

Flor de poemas. RJ: Nova Fronteira, 1972.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O que está acontecendo?

O MUNDO ESTÁ AO CONTRÁRIO E NINGUÉM REPAROU...


"Homem baleado em shopping recebe alta em Aracaju

Recebeu alta, nesta quarta-feira (28), o homem baleado em um shopping de Aracaju por causa de uma vaga no estacionamento. O crime aconteceu no sábado à noite (24). Um homem portador de deficiência física se revoltou com o uso supostamente indevido de uma vaga exclusiva para deficientes. As câmeras de vigilância registraram o momento em que ele se dirigiu ao motorista - e a discussão que se seguiu. O momento do disparo, à queima roupa, não aparece. O motorista ferido ainda salta do carro. O tiro quebrou três costelas e perfurou um pulmão. O atirador está foragido." Fonte: http://www.globo.com/


"Mas de novo vos digo: sejamos delicados."
(Afonso Romano de Sant'Anna)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Fado tropical

Composição:
Chico Buarque e Ruy Guerra



Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril



Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa"

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial

terça-feira, 27 de abril de 2010

O QUE DÁ SENTIDO À VIDA


Não sei se a vida é curta
Ou longa demais para nós
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido
Se não tocarmos os corações das pessoas,
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove;
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com ela
Não seja curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura,
Enquanto durar.

(Cora Coralina)


segunda-feira, 26 de abril de 2010

"E nada dava mais trabalho do que ser plural e aceitar o outro - não o igual ou o semelhante, mas o oposto. A primeira lição do ano era, portanto, a de que a democracia não é consenso, mas dissenso. Em termos de opinião, todos só são iguais perante a ditadura. Na democracia, tudo é diferença".
Zuenir Ventura (Minhas histórias dos outros, 2005, p.140).


sexta-feira, 23 de abril de 2010



Fonte: Estúdio B

terça-feira, 20 de abril de 2010

Soneto da buquinagem

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
angras do mar dos livros, onde bebo.

— Álcool mais absoluto — alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gêbo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo.

Nosso papel, velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.


Os sebos também encantaram Carlos Drummond de Andrade. Os versos desse soneto, de autoria do literato mineiro, revelam bem o seu amor pela poesia, poeta e livros velhos.

Buquinar: verbo intransitivo que significa “buscar e comprar livros usados em livrarias, bancas, sebos, alfarrabistas”. Palavra de origem francesa, presente na língua portuguesa desde o século XX, cuja etimologia está associada a bouquiner, bouquin – “livro antigo, pequeno livro”, conforme definição dada pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Essa pequena grande composição poética é um tributo aos garimpeiros, mestres na arte da buquinagem – ou garimpagem –, sujeitos que encontram antigos tesouros onde a maioria das pessoas vê pouca ou nenhuma importância.

Sebo, casa de alfarrábio e caga-sebo são alguns dos nomes dados às livrarias que comercializam livros usados. Há quem prefira “casa de alfarrábio” por considerar que a expressão “sebo“ é depreciativa. Preferem ser chamados alfarrabistas a sebistas, já que sebo é sujeita, porcaria.

Há outros, porém, como o falecido Amadeu Rossi Cocco, ou melhor, Seu Amadeu – fundador do sebo com mais tempo de atividade no mercado livreiro de Belo Horizonte (desde 1948) –, que são capazes de perceber a poesia da expressão “sebo” tal como Drummond, que convidou a amiga para, juntos, buquinarem à luz de velas. Seu Amadeu também gostava da meia luz:

Tenho saudade é do tempo em que sebo era sebo mesmo, quando não havia luz elétrica e as pessoas usavam aquelas velas grandes para as leituras noturnas. De tanto o povo ver pingando aqueles resíduos das velas, pôs o nome de sebo.”

Seu Amadeu faleceu em 9 de abril de 2009, aos 92 anos. A próxima postagem será sobre este que é um dos mais conhecidos ícones de Belo Horizonte.

FONTES:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p. 977.
DELGADO, Márcia Cristina Delgado. Cartografia sentimental de sebos e livros. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

"Um livro é um animal vivo", diz Aristóteles

Sei da existência de uma mulher – que não me conhece, como também não a conheço – que tem repulsa por livrarias largas, amplas e espaçosas. Ela acredita que o livro fica exposto como cachorro e gato dentro de gaiolas, situação que os fazem passar vexame. Ela resolve o problema não entrando em livrarias que não sejam pequenas como um quarto de fundos. Essa mesma mulher também não entra em bibliotecas. Acredita que o livro foi dissecado, violado por um legista, com a ficha catalográfica atrás, denunciando os cortes depois da morte. Quem me contou sobre essa mulher foi Fabrício Carpinejar, um cronista-poeta que me foi apresentado, recentemente, por uma querida amiga.

Espaçosas, amplas, largas, estreitas, curtas, pequenas como um quarto de fundos, luxuosas ou improvisadas numa garagem, empoeiradas ou cheirando éter, não importa: em casa de livro eu me sinto em casa. Singulares, todas são, para mim, sedutoras, encantadas e até mesmo venenosas.

A começar pelas livrarias, desconheço um estabelecimento comercial mais atraente. Os donos de livrarias são terríveis! Colocam montes de livros esteticamente dispostos, brincando entre si, numa mistura que vai do lúdico às elegias.

Imagine que entre o verbo e você só há uma parede de vidro, conhecida por vitrine. Diante de tantos convites, seria uma indelicadeza não aceitar parar e entrar um pouco para interagir com os habitantes daquela casa.

Todos novinhos, a maioria deles ainda lacrada, seres virgens, sôfregos, esperando por alguém que possa simplesmente tocá-los. Tão inexperientes! Ainda não sabem nada sobre a vida, desconhecem os costumes, as malícias. São crianças querendo sair de casa e mergulhar no mundo do desconhecido.

As luzes da casa são de densa brancura; as mesas e cadeiras que a compõem, bem confortáveis; os empregados são gentis e atenciosos (não interessa o porquê, desde que sejam). Em algumas delas, pode-se ser agraciado com um cafezinho ou um copo d’água. As mais ilustres contam com fundo musical, ar condicionado, acesso à internet e até espaço infantil, que é pras crianças também aproveitarem a visita.

É imperceptível, mas o feitiço é lançado quando se passa defronte a uma dessas casas. Se se é um pouco mais sensível, pronto! O sujeito fica encantado, transpõe o portal, levita por entre os labirintos e se perde na morada dos próprios desejos. Ao fim, despede-se, levando, nas sacolas, os intocados e suas promessas de vida, e vida em abundância!

Por outro lado, a metodologia, técnica e preceitos seguidos pelo bibliotecário, o controle dos empréstimos, a inevitável punição dos usuários atrasados, repreensões em resposta às conversas, as fichas catalográficas e a, não rara, peregrinação para encontrar o livro buscado – o que termina por transmudá-lo num troféu – fazem com que a biblioteca seja equiparada à casa dos pais.

Mas essas casas de livros, como ocorre com as dos pais, passam muito ao largo de tanto rigor. A par das regras, em ambas se sente o calor da pessoalidade, o silêncio da intimidade, há a autenticidade do não e da repreensão, a familiaridade com os habitantes. Nelas, pode-se ficar sozinho, esconder-se – entre as estantes ou nas salas –, passar o dia inteiro e não comprar nada, e até levar o livro sem pagar pode, sob a condição de devolvê-lo, claro.

Livros que moram em bibliotecas não têm pudor, andam nus, são promíscuos, não guardam rancor, nem são preconceituosos, entregam gratuitamente seus corpos a qualquer um que os deseje, são livro-livres. Muitos sofrem maus-tratos, abrigam restos de comida, bebem ou tomam banhos à força, são aleijados, desprezados; outros, amados e protegidos; mas todos, todos, permanecem resignados em seus lugares, à espera de alguém que os queira levar emprestado.

Essa vida errante é o que torna altruístas os livros que habitam as bibliotecas. Seres corajosos, eles são soldados que lutam contra a estagnação das idéias, cujo destino deve ser os ventiladores.

Esses abnegados seres também podem ser encontrados em outra morada: os sebos.

Há pessoas que desfazem de livros por puro ideal: acreditam que o circuito deles deve ser cíclico. Outras, por simples desprezo. Há as que mudam de casas para “apertamentos”, os quais não foram construídos para dar abrigo a livros, ou seja, deles precisam se desfazer. Há, também, os amantes perdidos, que desfazem de tudo o que possa lembrar o ser amado. Mas, certamente, as histórias mais tristes são daquelas pessoas que desfazem de seus livros por necessidade de dinheiro.

Órfãos, desprezados ou rejeitados, por necessidade, falta de condições ou puro desamor, esses livros são mandados para abrigos – os sebos – e, em troca, seus proprietários recebem irrisória contraprestação pecuniária, além do alívio por tirar os livros das costas.

Sem que elas saibam, sou muitíssimo grata a essas pessoas. Afinal, o problema de um pode ser a alegria do outro, ou outros. No caso dos sebos, ficamos no plural. Ficam felizes os sebistas, construtores da ponte; muito felizes também ficam os garimpeiros – freqüentadores de sebos – que adquirem obras raras, livros esgotados, coleções valiosas, economizam dinheiro, além do prazer de prosear, sem demora, com o dono do sebo, que, em regra, é um sujeito cativante, culto, apaixonado por livros e expectador do amor.

Ele não deseja que você compre qualquer livro. Os sebos se diferenciam das livrarias que trabalham somente com livros novos porque entre o sebista e o freguês estabelece-se uma relação que ultrapassa o âmbito comercial. Primeiro ele oferece uma banqueta, dá um tempo, oferece ajuda, começa a conversar, auxilia no garimpo, conta o caso de como o livro passou a morar naquele sebo, quanto tempo costuma ficar hospedado, mostra os novos livros velhos, vai dar atenção a outro garimpeiro, arruma alguns exemplares que estão tortos na estante, senta, inicia o processo de assepsia de um morador que acabou de chegar e espera, sem pressa, o término da garimpagem.

Ela pode durar alguns minutos, horas ou mesmo o dia inteiro. Sentado no chão, na banqueta ou trepado numa escada junto à estante, o garimpeiro manuseia cuidadosamente os livros, folheia, lê, troca opiniões com outros garimpeiros, faz perguntas ao sebista...

A negociação é outro momento interessante no comércio dos livros usados. Os preços irreais estão escritos na contracapa do livro. É falso porque sempre haverá, no mínimo, um desconto de dez por cento – às vezes, até sem que o freguês peça. Daí começa a choradeira. Pagamento à vista, quantidade de livros, raridade da obra, índice de procura, estado de conservação, enfim, tudo é motivo para argumentar e pedir para abaixar ainda mais o preço. Quase sempre dá certo!

A diversidade dos freqüentadores faz dos sebos uma espécie de mercado. A fidelidade de alguns é um fenômeno. Sebos são espaços de sociabilidade e resistência. Sobreviveram primeiro às grandes livrarias, depois à internet, agora (estão sobrevivendo) aos livros eletrônicos, ou seja, ao mercado, à tecnologia e ao conforto deles decorrente.

Enquanto sobreviverem os apaixonados pelo livro-livro - folhas de papel impressas, capa, ilustrações, sumário, cheiro, textura, anotações particulares, grifos, gotas de café, amassados, rugas, traças e ácaros (risos) -, os sebos sobreviverão.

Termino, como quem não quer nada, avisando que, todo aquele que comprar um livro eletrônico e que porventura queira desfazer de seus livros empoeirados e espaçosos, EU aceito doações. Sinto um prazer inenarrável ao assistir, dia após dia, à lotação da minha estante, escrivaninha, guarda-roupa... No futuro, quero um quarto inteirinho só pra eles, que seja bem espaçoso, confortável e iluminado. Eles merecem, os meus queridos amigos velhos que, por sinal, estão sempre monstruosamente acompanhados por ácaros e traças!

Para os amantes, o desejo nunca é saciado apenas com os olhos, pois a emoção e sensualidade do toque também são fontes de prazer.



"... é apenas um convite a explorar, um universo
que nos é ainda bastante desconhecido."
Robert Darnton



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELGADO, Márcia. Cartografia sentimental de livros e sebos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CARPINEJAR, Fabrício. O amor esquece de começar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Olhai para os que sofrem...


Foto: fonte desconhecida
A alma de Tom canta, lá de cima ele vê o Rio de Janeiro, morre de saudades, mas não consegue acreditar no que diz o Sr. Jorge Mário da Silva, seu conterrâneo. Perguntado sobre como andavam as coisas do lado de cá da existência, Seu Jorge respondeu, num canto choroso:

- Não vai nada bem, não vai nada bem!

Ninguém havia se suicidado, como Chatterton, mas na história que o estava entristecendo havia choro e “Sangue! Sangue! Sangue!”.

– Tom - disse Seu Jorge -, estamos em silêncio, de luto, o Rio de Janeiro não está mais lindo, nem nada de maravilhoso está acontecendo por aqui. Pelo contrário, caro amigo, nossa cidade e seus filhos foram arrasados pela maior chuva registrada até hoje.

Jorge Mário quis continuar a falar, mas o pranto embargou sua voz. A tragédia carioca trazia lembranças de uma triste fase que pertubou a juventude do artista. Vitório, seu irmão, foi morto numa chacina que desuniu os famíliares. Nessa época, o jovem passa à condição de sem-teto, mas a roda viva acabou carregando seu destino para outro lado: Jorge se abriga, por três anos, no teatro da UERJ (Universidade do Rio de Janeiro), onde se apaixona definitivamente pela arte, pela música, e encontra o lugar de onde não mais desceu: os palcos. Mas hoje sequer a música conseguia luzir aquele olhar enternecido.

Alguém bate à porta. Era Vinícius, corpo em desalinho, amargurado, com uma garrafa de uísque em punho e um jornal debaixo do braço. Ele, que nascera, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro, de 1913, na cidade maravilha mutante, não gostava de dias nublados, mas sempre soube que a tristeza não tem fim. Mostrou o jornal, notícia estava lá, na primeira página: “A chuva que castiga o Rio de Janeiro deixou pelo menos 220 mortos, centenas de feridos, alagou ruas, causou deslizamentos e destruição no Estado. É o maior índice de chuvas na cidade desde que começou a medição, há mais de 40 anos.”. O poetinha se calou e tragou mais um gole do amigo que repousava na garrafa.

Não demorou pra que chegasse Nelson Cavaquinho, que passou a beber junto aos amigos. Logo depois, o moço da Vila, Noel, e Cartola também chegaram. Os sambistas, que não estavam por dentro das notícias, apresentaram-se animados, ansiosos para ouvir aquele samba que Tom fizera só porque "Rio eu gosto de você”. Em verdade, queriam mesmo era ver a morena dançar, seu corpo todo balançar.

Mas Nelson Cavaquinho, de luto, foi logo dizendo:

- Respeite a minha dor
Não cante agora
...
Eu também já fui feliz
Até que um dia
O luto envolveu minha alegria.

Irineu de Almeida, o mestre Pixinguinha, só fazia soprar sua flauta, em perfeita sintonia com a melancolia que tomava conta das cidades e das pessoas. Sentia que não havia o que ser dito, pois era incapaz de compreender a dimensão da dor das vítimas. Preferiu o silência ao alarde.

Ao contrário do calar de sua voz, de hora em hora, repórteres armados de microfones, holofotes de emissoras de televisão e os flashs das máquinas fotográficas expunham ao público o desespero daqueles que haviam perdido sua casas, bens e, principalmente, as pessoas que amam. A todo momento buscavam depoimentos de dor e de glória, para que os fatos configurassem verdadeira tragédia. Via-se que a imprensa não pretendia apenas noticiar, mas utilizar tudo aquilo na disputa pelos níveis de audiência. Diante desse caos, Fernanda Abreu foi-se embora. Não queria saber do submundo da TV.

Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, abraçou um de seus ídolos, conterrâneo e xará, Angenor de Oliveira, o Cartola, e juntos choraram por ver a cidade perdida; mas logo em seguida sorriram com batidas de esperanças no coração, pois já estava terminado o verão. Ao fim daquela tempestade o sol nasceria de novo e, com o tempo, os cariocas – espertos e alegres, que já nascem bambas e craques, pelo canto da gaúcha Adriana Calcanhoto – reconstruiriam suas vidas.

Mas Tom continuava pensando nas águas de março que prometem vida aos corações quando fecha o verão...

O tempo nublado tudo acinzentava e os impedia de ver, da janela, o Corcovado e o lindo Redentor, de braços abertos sobre a Guanabara. Olhos nos olhos, todos, de mãos dadas, fizeram uma prece pra Deus, Nosso Senhor, pra chuva parar de molhar aquela terra de gentes inocentes.

Nessa hora, Jorge Ben inverteu o verso e pediu à chuva que parasse de chover sem parar:

- Por favor, chuva ruim, não molhe mais estas cidades assim.

E Tom passou a crer que não era o fundo do poço, nem o fim do caminho. As promessas de vida ainda haviam de ser cumpridas.

Heitor Villa-Lobos foi o último chegar. Este filho do Rio, em afinada desarmonia com a dor que flutuava sobre a cidade, disse calmamente aos amigos:

– Não se isolem. Não sejam indiferentes à dor alheia. Não se conformem. Dias como este servem, também, para reaproximar pessoas e, a partir deste sentimento solidário de dor, reconciliá-las com o efêmero. Distantes de nossas certezas e seguranças, continuaremos nossa caminhada, juntos e irresolutos diante dos mistérios da existência.

Todos ouviram atentos às palavras de Villa-Lobos, e estes Cariocas, amantes de seu povo e de sua terra natal, permaneceram ali, lutuosos, a beber e a cantar ...

É de se compreender, afinal “Cariocas não gostam de dias nublados”.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aos 184* ausentes que não tiveram tempo para se despedir...




A UM AUSENTE

(Carlos Drummond de Andrade)

Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.


* Número de mortos encontrados, até a manhã de hoje, no Rio de Janeiro. Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/
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segunda-feira, 5 de abril de 2010

DEPOIS DE UM FERIADÃO...

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Créditos: blog "Recado Online"
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