"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A hora do cansaço

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.


Carlos Drummond de Andrade
In Corpo, 1984.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Doação às vítimas das enchentes


Doe alimentos não perecíveis, água potável, material de higiene pessoal e limpeza, roupas, calçados, cobertores e roupas de cama e banho A Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (Cimos), órgão do Ministério Público de Minas Gerais, está recebendo doações para as vítimas das enchentes.
Faça sua doação na Rua Dias Adorno, 367, 1° andar, bairro Santo Agostinho, Belo Horizonte.
Período: 19/01 a 19/02/2011.



CHOVE. HÁ SILÊNCIO 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O triunfo da morte no Rio


O triunfo da morte (1562) - Pieter Brueghel

A INCONSTITUCIONAL TRAGÉDIA DO RIO
 
“Minha alma canta/Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar/Praia sem fim
Rio, você foi feito pra...”
(Tom Jobim)

 "É fácil por a culpa da tragédia do Rio em quem vai morar perigosamente nas encostas dos morros. É difícil imaginar-se na situação de quem não tem onde morar e tem de construir nos barrancos seus improvisos de casa. É fácil por a culpa no governo por não adotar medidas preventivas contra a tragédia. É difícil ser governo e ter que administrar o espólio da falta de planejamento urbano e irresponsabilidades acumuladas por gestões anteriores. Prevenir as tragédias não dá votos. Impedir que sem-tetos e construtoras inescrupulosas ocupem áreas de risco, tira votos. E a democracia, na prática política, não é mais do que ume engenharia eleitoreira.

Quer saber? Há leis e papeis bastantes para evitar ou, pelo menos, para reduzir os danos causados pelas enchentes e desmoronamentos de encostas. Anos sim e outros também. Talvez você não saiba, mas existe um sistema nacional de defesa civil, integrado por vários órgãos de todos os entes federativos, sob a coordenação de uma secretaria do Ministério da Integração Nacional, chamada de Sedec. No âmbito dos Municípios, existe a Comdec, uma coordenaria especializada em defesa civil. Sabe qual o objetivo da “defesa civil”? Reduzir a ocorrência e o impacto de desastres, por meio de ações de prevenção, de preparação para emergências e de resposta adequadas a suas ocorrências.

A organização do sistema é recente, data de 2 de julho de 2010, com a edição da medida provisória 494. Mas já havia disposições legais há tempo. Embora com raízes mais antigas, como a Diretoria Nacional do Serviço da Defesa Civil de 1943, somente após os estragos causados pelas grandes enchentes que ocorreram no Sudeste em 1966, passou-se a levar o assunto mais a sério com a organização da primeira “Defesa Civil Estadual do Brasil”. Onde? No antigo Estado da Guanabara, hoje, Rio de Janeiro. Em 1969, foi editado o Decreto-Lei n. 950, criando o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) e prevendo um plano nacional de defesa permanente. Na verdade, somente em 1988, criou-se um sistema nacional de defesa civil com propósitos mais assentados de planejamento e coordenação contra eventos e catástrofes. Para não ficar somente no tema específico da defesa civil, recordo-me do Estatuto das Cidades, Lei 10257/2001, que é uma obra-prima de normas para adoção de políticas urbanas sustentáveis.

Não pare ainda por causa dessa citação de leis. A própria Constituição de 1988 prevê, em diversos artigos, ações relativas à defesa civil (arts. 22, XXVII, e 144, § 5º) e ao adequado ordenamento territorial, ao planejamento e ao controle do uso do solo (arts. 21, IX, XVIII;. 25, § 3º;. 30, VIII e 182, § 1º) Destacaria dois deles que nos oferecem a noção do todo: Cabe à União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (art. 21; XVIII). É tarefa municipal (eis o segundo destaque) promover a política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182).

O volume de chuva é inconstitucional, vejo dizer uma autoridade. Pobre papel décor que recebe de tudo, por tudo e em nome de tudo. Tinta não lhe falta, todavia. Tintas de vergonha mais do que de prescrição. Na verdade, o que sobra de água no Rio falta de vontade política para efetivar uma política decente (constitucional) de uso e ocupação do solo, sem descaso, sem tentações eleitoreiras ou patrimoniais. A ganância de alguns políticos (e seus comparsas privados) é que é inconstitucional; a incompetência é inconstitucional; as mortes são inconstitucionais; a tragédia anunciada, por tudo, por todos, por nós que não sabemos fazer bem política e, com ela, os políticos, é desgraçadamente inconstitucional. É fácil ser governo assim; é difícil ser povo soterrado."

José Adércio, em 18.1.2011

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

NOSSO ALTAR PARTICULAR

Há quem decore a vida na ponta da língua,
outros rabiscam o próximo passo
na ponta do acaso.
Aqui, nessa estação, onde um outono
instrumental inspira a queda das palavras,
minha força escorre poemas
pelo cedro desse palco, assim como
meus pés cravam a fidelidade aos
sonhos desses guris atrevidos que
aqui brotarão virtuosos, aguerridos
com seus estilingues de cordas
vocais de nylon e de aço, apedrejando
a covardia dos homens secretos a si.
Fábula em partituras da Gata de Botas!
Maria e seus Joões cantam o caminho
de volta para o íntimo,
hasteiam leves uma bandeira
toda bordada de mocidade,
doces rendas melódicas, ponto a ponto
terras descobertas, a cada acorde
um ensaio para acordar
um moço jeito de existir
sem a intenção de trocar de mundo,
apenas unir quem não coube
em sua acidez.
Inventamos aqui, nesse solo fértil,
veraneio da arte, palco do palhaço
“rendez-vous”,
um baile de amigos em pleno
velório do falecido monstro que cobria
o horizonte de quem ama o que se pode ser.
Aqui jazz uma solidão ignorante.
Naufragam agora todas as farsas
escritas pelo cão.
Dionísio, arauto de tudo que se une
fantasticamente, abre alas desse
concerto para os desconcertados
se banharem.
A partir de hoje uma nau de solidão
navegará aliviada dos apegos
impossíveis, e uma nova geração
desvendará a ilha daqueles que sonham
antes de dormir.
Notas serão como uma leve pluma,
lançadas ao vento com destino certo:
afago no espírito, cócegas na alma,
mimo na paz, inibir agonias,
afrouxar todo o receio de ser
devaneador.
Na Rua do Acalanto, primeiro peito
franco à direita, casa de janelas
sempre abertas e dispostas ao novo,
jardim de lindas rosas de espinhos
prósperos, varanda ao infinito,
mansão cor de legítimo coração,
em frente ao público dessa nossa solidão.
Ali a pena dançará e nenhuma
câimbra na felicidade,
nem faíscas de isolamento
nos fará desistir de estarmos
“todos juntos”.

Caio Sóh

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

 
A persistência da memória, Salvador Dali, 1931.

O TEMPO

(Carlos Drummond de Andrade)

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um individuo genial.

Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.

Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.