"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Receita de ano novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo,
remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo,
eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 28 de dezembro de 2010



La Danse - Henry Matisse, 1910.

ORGANIZA O NATAL

Carlos Drummond de Andrade

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Papai Noel às avessas

Carlos Drummond de Andrade


Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais
[lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidentes
brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos".

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cheio de Vazio



O vazio é um meio de transporte
Pra quem tem coração cheio
Cheio de vazios que transbordam
Seus sentidos pelo meio
Meio que circunda o infinito
Tão bonito de tão feio
Feio que ensina e que termina
Começando outro passeio

E lá do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

Amor é o nome que se dá
Quando se percebe o olhar alheio
Alheio a tudo que não for
Aquilo que está dentro do teu seio
Porque seio é o alimento
E ao mesmo tempo a fonte para o desbloqueio
E desbloqueio é quando aquele tal vazio
Se transforma em amor que veio

Lá do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

Do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

O vazio é um meio de transporte
Pra quem tem coração cheio

Composição: Paulinho Moska
 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A outra

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um ao outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
Sãos que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem á a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra?

Bem sei, és bela, és quem desejo…
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar,
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!

Fernando Pessoa

KLIMT, Gustav. O beijo (1907-08).


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Você tem que me ler


Claude Monet
Madame Monet and her son (1875)

É antropológico: mulher odeia ser mandada. São séculos e séculos de opressão. Não dê corda, que já cheira a forca. Vale, inclusive, para a masoquista. Gosta de firmeza, não que alguém diga o que ela deve ou não fazer. Não seja autoritário. O feminismo não é conversa de sapatão.

Que aconselhe, não emplaque uma ordem. Que ofereça um palpite, este é despretensioso como um assobio, é soprar uma melodia e permitir espaço para que ela complete a letra. Finja que está no chuveiro – menor o risco de se afogar. Fale cantado. Quem canta nunca será um ditador.

Posso estar plenamente equivocado, sou tão bonito quanto carro de eletricista, mas mulher aprecia é sentir saudade. Quando o homem desaparece e ela corre para procurá-lo. São coisas do cotidiano. Fui percebendo que a conversa com a minha namorada estragava sempre do mesmo jeito. Havia um método no erro. Uma insistência de minha parte. Uma frase morse que truncava o entendimento. Depois que pronunciava aquilo, nada mais funcionava. Da calmaria, ela migrava para um estado nervoso e impaciente. A transformação de sua atitude me baqueava: O que foi? Será que perdi algo? Retrocedia para caçar uma gafe. Cansei até captar o sinal. O homem ainda tenta melhorar sua imagem com o bombril na antena.

Eu dizia “você tem que” a cada início de diálogo. Impositivo, não agia por mal, era um hábito, buscava convencer com “você tem que”. Parecia que tinha a solução dos problemas do mundo. Persuasão é a sedução para quem não tem paciência. Meu caso; não cuidava da linguagem e depois estranhava o silêncio dela. “Você tem que” é um mandado de segurança. É atestar que ela não desfruta de condições de conduzir a própria vida. Virava um segundo pai, determinando suas atitudes. Fugia da cumplicidade, vinha com os mandamentos e as condicionais de comportamento para que merecesse a mesada.

O homem não botou na cabeça que a fragilidade da mulher não é dependência. Ela não precisa ser protegida, e sim respeitada. Existe uma diferença aguda no tratamento. Depois que ela fica braba não adianta remendar. Emerge um pânico das cavernas, o receio de ser puxada pelos cabelos e pelas palavras. Igual é chamá-la de louca no meio de uma discussão.

Quem não encheu o pulmão para desabafar “você está louca!”, com aquele grito catártico, que serve como elevador para todo o prédio? Eu confesso, mais de uma vez. É novamente afirmar que ela não tem domínio, que nem sabe o que está falando e menosprezar sua opinião. Pode até ser louca, mas não chame de louca, senão ela não vai recuperar o juízo. Na história do pensamento, quantas mulheres foram enviadas para o hospício devido a sua autonomia? Quantas receberam eletrochoque ou sofreram lobotomia em função da independência de estilo? Significa um joanete ancestral, um calo antiguíssimo, não pise.

Joana D’Arc não foi uma bruxa. Assim como vassoura não é para voar, é para varrer qualquer sujeira machista dentro de casa.
Fabrício Carpinejar

Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 04/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16478
Republicado no blog do autor: www.http://carpinejar.blogspot.com/

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Era pra ter sido publicado no dia 2, mas como eu estava de férias... Ah, o assunto pode parecer chato, mas o texto é poético e delicado, como seu autor, Affonso Romano de Sant'Anna.


Conviver com os mortos

Está certo que no dia dos mortos a gente vá ao cemitério rever imaginariamente os que amamos. Mas deveria ser diferente. Eles é que deveriam vir nos visitar.

Nisto, a Natureza ou Deus organizou mal as coisas. Mais bonito, mais completo seria se nesse dia os mortos reaparecessem. Não para nos amedrontar, mas para festejar. Que fosse apenas por um dia. Era melhor que nada.

A gente arrumaria a casa, colocaria as coisas do morto limpinhas e em ordem, prepararia o prato que ele mais gostava, separaria sua bebida, reservaríamos seu lugar à mesa, guardaríamos o seu jornal, caso ele ainda se interessasse, e passaríamos o dia inteiro conversando e rindo.
Algum tempo gastaríamos contando as novidades, pois não há certeza se eles, lá do outro lado, prestam tanta atenção no que ocorre aqui. De qualquer forma, era de se supor que não se admirassem muito, que nos olhassem com complacência e ternura.

Seria como se eles tivessem voltado de uma longa viagem.


Na rua encontraríamos outros mortos revividos sentados nos bares, na paria e nos jardins. Cada um sempre fazendo aquilo que gostava quando estava nesse chamado ‘vale de lágrimas’.

Uma das condições desse reencontro anual seria que eles não nos dissessem nada sobre o futuro. Caso contrário, o que deveria ser festa ia se transformar em angustiante sessão de quiromancia. E nada também de perguntas sobre como é a vida do lado de lá. Pois se começássemos a indagar nessa direção a conversa ia acabar degenerando em conflitos religiosos.

Um ia logo dizer: “Tá vendo, num disse que num havia purgatório?”. Outro atalharia: “Bem que eu desconfiava que anjo não tinha asa nem ficava cantando o dia todo”. Alguém poderia perguntar: “Você viu fulano de tal no Céu?” Ou será que foi mesmo para o Inferno como merecia?”

Enfim, ia virar uma cena de eternas fofocas terrenas. E era capaz de nossos mortos se aborrecerem dizendo: “Vocês não têm jeito. Não mudaram em nada, hein?!”

Outra condição para essa visita anual seria, evidentemente, que os mortos não interferissem nos nossos amores atuais. Nisto, certamente, os mortos devem ser mais sábios. Por já terem provado a eternidade, aceitariam ver a esposa, o esposo, o namorado ou a namorada feliz com outra questão sentimental. “É, fulano, é preciso mesmo paciência, no meu temo ele (ou ela) já era assim.”

Se esse diálogo, se essa convivência, se esse ir-e-vir fossem possíveis, garanto que a vida seria muito melhor. A vida, é claro, e a morte. E teríamos que modificar aquele dito clássico: “Os mortos matam os vivos”, para “Os mortos ajudam os vivos a viverem”.

Que seria bom, isto seria. E acho que é uma injustiça isto de cortarem a convivência que a gente tinha e que era tão boa.

Já andei lendo nos especialistas em morte que a morte é a nossa salvação. Pode parecer estranho, mas é isto o que dizem. Uns afirmam que a morte é que dá sentido aos humanos. Outros cientificamente asseveram que se os velhos não morressem a questão do poder e da riqueza seria insolúvel. Os que têm uma interpretação psicológica da vida dizem que a antevisão de uma vida interminável seria insuportável.

Mas não estou propondo aqui a abolição da morte. Proponho, sim, uma coisa mais simples, mais humana e transcendental: que pelo menos uma vez ao ano acabem com essa barreira e seja permitida a imorredoura confraternização física entre os de lá e os de cá.

Se Deus (ou a Natureza) quiser anotar essa reivindicação, terá minha eterna gratidão.

Enquanto isso não ocorre, vamos retornando do cemitério, ficando em casa aguardando ou revivendo nossos mortos com carinhosa emoção. E se um deles quiser aparecer, será uma festa. Encontrará a mesa posta, os mesmos braços abertos e uma vontade danada de botar a conversa em dia.
 

Extraído do livro que serviu de inspiração para a criação deste blog, "Tempo de delicadeza", de Affonso Romano de Sant'Anna.

sábado, 23 de outubro de 2010


FOTOGRAFIA

Composição: Tom Jobim
  
Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo e o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz,
Escureceu
O sol caiu no mar
E aquela luz
Lá em baixo se acendeu...
Você e eu

Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção
Para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções
Têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo 

  
ANOS DOURADOS

Tom Jobim e Chico Buarque

Parece que dizes: "te amo, Maria"
Na fotografia estamos felizes
Te ligo afobada e deixo confissões no gravador
Vai ser engraçado se tens um novo amor
Me vejo a teu lado
Te amo? Não lembro
Parece dezembro de um ano dourado
Parece bolero, te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Não sei se ainda te esqueço de fato
No nosso retrato pareço tão linda
Te ligo ofegante e digo confusões no gravador
É desconcertante rever o grande amor
Meus olhos molhados, insanos, dezembros
Mas quando eu me lembro são anos dourados
Ainda te quero, bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais




quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Anoitecer em outubro




ANOITECER EM OUTUBRO

Ferreira Gullar


A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier


GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 65.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Escrito na orelha...


Após onze anos da publicação de seu último livro de poemas, Muitas vozes, Ferreira Gullar entrega ao público, agora, este Em alguma parte alguma, em que se dá prosseguimento à reflexão poética sobre a existência, difere dos livros anteriores ao desenvolver novos temas e, sobretudo, pelas questões que suscita na realização do poema.

É ele mesmo quem costuma assinalar, como característica de sua produção, o fato de que, sem que o busque deliberadamente, cada um de seus livros de poemas difere do outro, bem mais do que costuma ocorrer num mesmo autor. Faz questão de observar que não planeja seus livros de poemas, sendo eles, portanto, resultado da própria indagação poética e da reflexão sobre a vida e sobre seu trabalho de poeta. Segundo afirma, o seu poema nasce do 'espanto', quando depara-se com um aspecto inesperado do real e, a partir daí, vão se sucedendo os poemas, até que a motivação se esgote. Isso explica a recorrência de determinados temas, que, tempos depois, voltam a ganhar atualidade.

Nestes últimos anos, a obra de Gullar, já consagrada pela crítica e pelos leitores, foi distinguida com prêmios de alta significação na vida cultural, como o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e, este ano, com o Prêmio Camões, a mais alta distinção que se concede a escritores de língua portuguesa.

Ferreira Gullar foi também indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2002 e 2004.

"Orelha" do livro Em alguma parte alguma. de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, José Olympio, 2010.

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OFF PRICE

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                     fora de esquema
                     meu poema
inesperado

               e que eu possa
               cada vez mais desaprender
               de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


domingo, 17 de outubro de 2010


O DUPLO

Foi-se formando
a meu lado
                     um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
                               do que fiz
                      do que era meu

e pelo país
                     flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
            vejo-o passar
            com meu rosto

mas sem o peso
             do meu corpo
que sou eu
culpado e pouco

Ferreira Gullar


GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 38.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010



A Poesia

Pablo Neruda
 
E foi nessa idade… Chegou a poesia
à minha procura. Não sei, não sei de onde
saiu, de inverno ou de rio.
Não sei como nem quando,
não, não eram vocês, não eram
palavras, nem silêncio,
mas chamava-me de uma rua,
dos ramos da noite,
de repente de entre os outros,
entre fogos violentos
ou regressando sozinho,
ali estava sem rosto
e tocava-me.

Eu não sabia o que dizer, a minha boca
não sabia
nomear,
os meus olhos estavam cegos,
e algo começava na minha alma,
febre ou asas perdidas,
e fiz-me sozinho,
decifrando
aquela queimadura,
e escrevi a primeira linha vaga,
vaga, sem corpo, pura
tolice,
pura sabedoria
do que não sabe nada,
e vi de repente
o céu
desabrochado
e aberto,
planetas,
plantações palpitantes,
a sombra perfurada,
trespassada
por flechas, fogo e flores,
a noite sinuosa, o universo.

E eu, ser mínimo,
ébrio do grande vazio
estrelado,
semelhante, imagem
do mistério,
senti-me parte pura
do abismo,
rodei com as estrelas,
o meu coração libertou-se no vento.

Tradução de Gonçalo Figueiredo Augusto

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

 

Primavera na Serra

 Claridade quente da manhã vaidosa
O sol deve ter posto lente nova,
e clareou todas as manchas,
para esperdiçar luz.

Dez esquadrilhas de periquitos verdes
receberam ordem de partida,
deixando para as araras cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
pincelou no dorso de um camaleão.

E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada no cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
fatigada, talvez, de tanta erudição... 

João Guimarães Rosa 

Magma. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997, p. 141.
Foto: Portal Grande Sertão, inaugurado em junho/2010, na cidade de Cordisburgo/MG, onde nasceu Guimarães Rosa.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010



Oração Ao Tempo

Caetano Veloso

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Primavera, por Cecília Meireles


A primavera acaba de chegar, Cecília! Estamos no 9º minuto do dia 23 de setembro de 2010 (Cosmobrain Astronomia e Astrofísica).



A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Cecília Meireles

Texto: “Cecília Meireles – Obra em Prosa – Volume 1″, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1998, p. 366.
Foto: Fernando Gomes (Avenida Brasil, em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul).

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Dia da árvore com Arnaldo Antunes



As Árvores

Arnaldo Antunes


As árvores são fáceis de achar

Ficam plantadas no chão

Mamam do céu pelas folhas

E pela terra

Também bebem água

Cantam no vento

E recebem a chuva de galhos abertos

Há as que dão frutas

E as que dão frutos

As de copa larga

E as que habitam esquilos

As que chovem depois da chuva

As cabeludas, as mais jovens mudas

As árvores ficam paradas

Uma a uma enfileiradas

Na alameda

Crescem pra cima como as pessoas

Mas nunca se deitam

O céu aceitam

Crescem como as pessoas

Mas não são soltas nos passos

São maiores, mas

Ocupam menos espaço

Árvore da vida

Árvore querida

Perdão pelo coração

Que eu desenhei em você

Com o nome do meu amor.


Foto: Kátia Araújo, em Cordisburgo/MG/2010.

domingo, 19 de setembro de 2010



Desejo de regresso

Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade neste mundo.
(Ou talvez fosse mentira...)

Cecília Meireles

sábado, 18 de setembro de 2010

 
Cecília Meireles em Lisboa.
Desenho de Fernando Correia Dias.

Lua adversa


Tenho fases, como a lua,

fases de andar escondida,

fases de vir para a rua...

Perdição da minha vida!

Perdição da vida minha!

Tenho fases de ser tua,

tenho outras de ser sozinha.


Fases que vão e que vêm,

no secreto calendário

que um astrólogo arbitrário

inventou para meu uso.

E roda a melancolia

seu interminável fuso!


Não me encontro com ninguém

(tenho fases, como a lua...).

No dia de alguém ser meu

não é dia de eu ser sua...

E, quando chega esse dia,

o outro desapareceu...



 Canção do Sonho Acabado


Já tive a rosa do amor

- rubra rosa, sem pudor.

Cobicei, cheirei, colhi.

Mas ela despetalou

E outra igual, nunca mais vi.


Já vivi mil aventuras,

Me embriaguei de alegria!

Mas os risos da ventura,

No limiar da loucura,


Se tornaram fantasia...


Já almejei felicidade,

Mãos dadas, fraternidade,

Um ideal sem fronteiras

- utopia! Voou ligeira,

Nas asas da liberdade.


Desejei viver. Demais!

Segurar a juventude,

Prender o tempo na mão,

Plantar o lírio da paz!

Mas nem mesmo isto eu pude.


Tentei, porém nada fiz...

Muito, da vida, eu já quis.

Já quis... mas não quero mais...

Cecília Meireles

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ginástica


Cecília Meireles
 
Ah! Com que extremado esforço nos elevamos
acima de nós, para o inalcançável
e retornamos aos nossos limites,
e nos curvamos até o chão.

Vamos e voltamos, delicados e impetuosos,
disciplinando a força, dominando o equilíbrio,
atrelando à levitação do sonho
o peso do corpo, melancólico.

Discípulos da música, respiramos sua cadência,
e a nossa densidade parece-nos, de súbito,
transparência e cristalização.

Vamos e voltamos, inspirados e deleitosos,
e decerto quereríamos definitivamente ir:
mas o jogo é de ir e ficar.




quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sugestão

Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.
À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.
Não como o resto dos homens.

Cecília Meireles, in 'Mar Absoluto'.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ou isto ou aquilo


Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa estar
ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo, ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinque, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
 
Cecília Meireles
 

domingo, 12 de setembro de 2010

Notícia da vida


 Por Darcy Damasceno

       Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Rio Comprido, no dia 7 de novembro de 1901, e na mesma cidade faleceu, em 9 de novembro de 1964. Aos três anos de idade, já perdera os pais e três irmãos que não chegou a conhecer. Criada pela avó materna, habituou-se desde a infância ao exercício da solidão, e as circunstâncias dramáticas que lhe envolveram os primeiros tempos de vida foram em grande parte causadoras do precoce desenvolvimento de sua consciência e do afinamento de sua sensibilidade.
       Essa avó – Jacinta Garcia Benevides –, cujo nome Cecília deixou inscrito numa belíssima “Elegia” de Mar absoluto e outros poemas, exerceu sobre a criança extraordinária influência. Em vários lugares deixou a poetisa declarados o afeto e a admiração que lhe despertara aquela ilhoa rude e simples como os dons da terra. “O que há de mais terno em mim, de mais profundo e autêntico, é, sem dúvida, o que herdei da minha avó, açoriana de São Miguel”, confidência em carta a um amigo. E revelou numa entrevista a Pedro Bloch, para a revista “Manchete”:
       – Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: “Por quem você está rezando?” “Por todas as pessoas que sofrem!” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.
       Por outro lado, envolve-se numa névoa lendária a figura do avô materno, a quem também Cecília não conheceu, mas de quem fez comovida evocação: um homem de cepa antiga, que jamais se deixara fotografar, “para que não morresse”. Esse avô, cuja figura apenas imaginada por coisas de ouvir dizer se fixaria tão emocionadamente em sua alma, esse avô não teria sequer nome em papéis: as notícias respeitantes à biografia de Cecília e por ela mesma fornecidas passaram sempre da designação dos avós paternos – sem expressão afetiva em sua vida – para a avó Jacinta. Era como se se prolongasse a magia daquele ser, calando-se-lhe o nome.
       A infância de orfandade deu a Cecília, conforme a escritora mesma declarou mais de uma vez, duas coisas que parecem negativas, mas que para ela foram sempre positivas: silêncio e solidão. Nessa área e sob esse clima desenvolveu-se toda a sua vida e a sua arte.
       Estudante da antiga Escola Normal, onde se tornou professora em 1917, distingui-se como aluna exemplar, merecendo a estima de mestres como Alfredo Gomes, Basílio de Magalhães e outros. Ingressou então no magistério primário, mas desdobrou também sua atividade noutros numerosos campos: o jornalismo, a pedagogia, o folclore – tudo a par, sempre, da criação literária. Empolgada pelos problemas educacionais, participou ativamente das campanhas renovadoras do ensino, antes e depois da Revolução de 30. Em 1935 era nomeada professora de literatura luso-brasileira da recém-fundamentada da Universidade do Distrito Federal.
       De grande significação na sua vida foram as viagens. Elas começaram em 1934 com breve visita a Portugal, onde reencontrou as raízes do sangue e da herança cultural; continuaram; continuaram em 1940 (Estados Unidos e México) e, depois, em diferentes oportunidades, conheceu o Uruguai, a Argentina, a Espanha, a Índia, Israel, Itália, Holanda, França, etc., extraindo do contato com gentes, costumes e idiomas matéria de melhor compreensão da vida da humanidade. Nenhuma região, entretanto, imprimiu-se-lhe na sensibilidade como a Índia, para cuja cultura se voltara Cecília desde a adolescência e de cujo pensamento filosófico se aproximara através dos anos.
       Cecília Meireles casou-se duas vezes: a primeira (em 1922) com o artista português Fernando Correia Dias; a segunda (em 1940) com o agrônomo Heitor Grillo. São do primeiro matrimonio as três filhas que deixou.

Rio de Janeiro, 1972.

Fonte: Cecília Meireles: seleta em prosa e verso. Seleção, notas e apresentação de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1975.

Beira-Mar

Sou moradora das areias
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias
como os peixinhos nos rios...

Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar – e mais nada.

Cecília Meireles


Vai, como presente de aniversário, esse poeminha do fofo do Alberto Caeiro: “ Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera, e um rio aonde ir ter quando acabemos...”


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Parabéns, amorzinho!!!



POEMA DE ANIVERSÁRIO*

Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte...

Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.

Quisera dar-te também o mar onde nadei menino, o tranqüilo mar de ilha em que perdia e em que mergulhava, e de onde trazia a forma elementar de tudo o que existe no espaço acima – estrelas mortas, meteoritos submersos, o plancto das galáxias, a placenta do Infinito.

E mais, quisera dar-te as minhas loucas carreiras à toa, por certo em premonitória busca de teus braços, e a vontade de grimpar tudo de alto, e transpor tudo de proibido, e os elásticos saltos dançarinos para alcançar folhas, aves, estrelas – e a ti mesma, luminosa Lucina, e derramar claridade em mim menino.

Ah, pudesse eu dar-te o meu primeiro medo e a minha primeira coragem; o meu primeiro medo à treva e a minha primeira coragem de enfrentá-la, e o primeiro arrepio sentido ao ser tocado de leve pela mão invisível da Morte.

E o que não daria eu para ofertar-te o instante em que, jazente e sozinho no mundo, enquanto soava em prece o cantochão da noite, vi tua forma emergir do meu flanco, e se esforçar, imensa ondina arquejante, para se desprender de mim; e eu te pari gritando, em meio a temporais desencadeados, roto e imundo do pó da terra.

Gostaria de dar-te, Namorada, aquela madrugada em que, pela primeira vez, as brancas moléculas do papel diante de mim dilataram-se ante o mistério da poesia subitamente incorporada; e dá-Ia com tudo o que nela havia de silencioso e inefável - o pasmo das estrelas, o mudo assombro das casas, o murmúrio místico das árvores a se tocarem sob a Lua.

E também o instante anterior à tua vinda, quando, esperando-te chegar, relembrei-te adolescente naquela mesma cidade em que te reencontrava anos depois; e a certeza que tive, ao te olhar, da fatalidade insigne do nosso encontro, e de que eu estava, de um só golpe, perdido e salvo.

Quisera dar-te, sobretudo, Amada minha, o instante da minha morte; e que ele fosse também o instante da tua morte, de modo que nós, por tanto tempo em vida separados, vivêssemos em nosso decesso uma só eternidade; e que nossos corpos fossem embalsamados e sepultados juntos e acima da terra; e que todos aqueles que ainda se vão amar pudessem ir mirar-nos em nosso último leito; e que sobre nossa lápide comum jazesse a estátua de um homem parindo uma mulher do seu flanco; e que nela houvesse apenas, como epitáfio, estes versos finais de uma cançâo que te dediquei:

... dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim...


*Vinícius de Moraes
*in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
*in Poesia completa e prosa: "A lua de Montevidéu"
*in Poesia completa e prosa: "Para viver um grande amor"