"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 16 de abril de 2010

"Um livro é um animal vivo", diz Aristóteles

Sei da existência de uma mulher – que não me conhece, como também não a conheço – que tem repulsa por livrarias largas, amplas e espaçosas. Ela acredita que o livro fica exposto como cachorro e gato dentro de gaiolas, situação que os fazem passar vexame. Ela resolve o problema não entrando em livrarias que não sejam pequenas como um quarto de fundos. Essa mesma mulher também não entra em bibliotecas. Acredita que o livro foi dissecado, violado por um legista, com a ficha catalográfica atrás, denunciando os cortes depois da morte. Quem me contou sobre essa mulher foi Fabrício Carpinejar, um cronista-poeta que me foi apresentado, recentemente, por uma querida amiga.

Espaçosas, amplas, largas, estreitas, curtas, pequenas como um quarto de fundos, luxuosas ou improvisadas numa garagem, empoeiradas ou cheirando éter, não importa: em casa de livro eu me sinto em casa. Singulares, todas são, para mim, sedutoras, encantadas e até mesmo venenosas.

A começar pelas livrarias, desconheço um estabelecimento comercial mais atraente. Os donos de livrarias são terríveis! Colocam montes de livros esteticamente dispostos, brincando entre si, numa mistura que vai do lúdico às elegias.

Imagine que entre o verbo e você só há uma parede de vidro, conhecida por vitrine. Diante de tantos convites, seria uma indelicadeza não aceitar parar e entrar um pouco para interagir com os habitantes daquela casa.

Todos novinhos, a maioria deles ainda lacrada, seres virgens, sôfregos, esperando por alguém que possa simplesmente tocá-los. Tão inexperientes! Ainda não sabem nada sobre a vida, desconhecem os costumes, as malícias. São crianças querendo sair de casa e mergulhar no mundo do desconhecido.

As luzes da casa são de densa brancura; as mesas e cadeiras que a compõem, bem confortáveis; os empregados são gentis e atenciosos (não interessa o porquê, desde que sejam). Em algumas delas, pode-se ser agraciado com um cafezinho ou um copo d’água. As mais ilustres contam com fundo musical, ar condicionado, acesso à internet e até espaço infantil, que é pras crianças também aproveitarem a visita.

É imperceptível, mas o feitiço é lançado quando se passa defronte a uma dessas casas. Se se é um pouco mais sensível, pronto! O sujeito fica encantado, transpõe o portal, levita por entre os labirintos e se perde na morada dos próprios desejos. Ao fim, despede-se, levando, nas sacolas, os intocados e suas promessas de vida, e vida em abundância!

Por outro lado, a metodologia, técnica e preceitos seguidos pelo bibliotecário, o controle dos empréstimos, a inevitável punição dos usuários atrasados, repreensões em resposta às conversas, as fichas catalográficas e a, não rara, peregrinação para encontrar o livro buscado – o que termina por transmudá-lo num troféu – fazem com que a biblioteca seja equiparada à casa dos pais.

Mas essas casas de livros, como ocorre com as dos pais, passam muito ao largo de tanto rigor. A par das regras, em ambas se sente o calor da pessoalidade, o silêncio da intimidade, há a autenticidade do não e da repreensão, a familiaridade com os habitantes. Nelas, pode-se ficar sozinho, esconder-se – entre as estantes ou nas salas –, passar o dia inteiro e não comprar nada, e até levar o livro sem pagar pode, sob a condição de devolvê-lo, claro.

Livros que moram em bibliotecas não têm pudor, andam nus, são promíscuos, não guardam rancor, nem são preconceituosos, entregam gratuitamente seus corpos a qualquer um que os deseje, são livro-livres. Muitos sofrem maus-tratos, abrigam restos de comida, bebem ou tomam banhos à força, são aleijados, desprezados; outros, amados e protegidos; mas todos, todos, permanecem resignados em seus lugares, à espera de alguém que os queira levar emprestado.

Essa vida errante é o que torna altruístas os livros que habitam as bibliotecas. Seres corajosos, eles são soldados que lutam contra a estagnação das idéias, cujo destino deve ser os ventiladores.

Esses abnegados seres também podem ser encontrados em outra morada: os sebos.

Há pessoas que desfazem de livros por puro ideal: acreditam que o circuito deles deve ser cíclico. Outras, por simples desprezo. Há as que mudam de casas para “apertamentos”, os quais não foram construídos para dar abrigo a livros, ou seja, deles precisam se desfazer. Há, também, os amantes perdidos, que desfazem de tudo o que possa lembrar o ser amado. Mas, certamente, as histórias mais tristes são daquelas pessoas que desfazem de seus livros por necessidade de dinheiro.

Órfãos, desprezados ou rejeitados, por necessidade, falta de condições ou puro desamor, esses livros são mandados para abrigos – os sebos – e, em troca, seus proprietários recebem irrisória contraprestação pecuniária, além do alívio por tirar os livros das costas.

Sem que elas saibam, sou muitíssimo grata a essas pessoas. Afinal, o problema de um pode ser a alegria do outro, ou outros. No caso dos sebos, ficamos no plural. Ficam felizes os sebistas, construtores da ponte; muito felizes também ficam os garimpeiros – freqüentadores de sebos – que adquirem obras raras, livros esgotados, coleções valiosas, economizam dinheiro, além do prazer de prosear, sem demora, com o dono do sebo, que, em regra, é um sujeito cativante, culto, apaixonado por livros e expectador do amor.

Ele não deseja que você compre qualquer livro. Os sebos se diferenciam das livrarias que trabalham somente com livros novos porque entre o sebista e o freguês estabelece-se uma relação que ultrapassa o âmbito comercial. Primeiro ele oferece uma banqueta, dá um tempo, oferece ajuda, começa a conversar, auxilia no garimpo, conta o caso de como o livro passou a morar naquele sebo, quanto tempo costuma ficar hospedado, mostra os novos livros velhos, vai dar atenção a outro garimpeiro, arruma alguns exemplares que estão tortos na estante, senta, inicia o processo de assepsia de um morador que acabou de chegar e espera, sem pressa, o término da garimpagem.

Ela pode durar alguns minutos, horas ou mesmo o dia inteiro. Sentado no chão, na banqueta ou trepado numa escada junto à estante, o garimpeiro manuseia cuidadosamente os livros, folheia, lê, troca opiniões com outros garimpeiros, faz perguntas ao sebista...

A negociação é outro momento interessante no comércio dos livros usados. Os preços irreais estão escritos na contracapa do livro. É falso porque sempre haverá, no mínimo, um desconto de dez por cento – às vezes, até sem que o freguês peça. Daí começa a choradeira. Pagamento à vista, quantidade de livros, raridade da obra, índice de procura, estado de conservação, enfim, tudo é motivo para argumentar e pedir para abaixar ainda mais o preço. Quase sempre dá certo!

A diversidade dos freqüentadores faz dos sebos uma espécie de mercado. A fidelidade de alguns é um fenômeno. Sebos são espaços de sociabilidade e resistência. Sobreviveram primeiro às grandes livrarias, depois à internet, agora (estão sobrevivendo) aos livros eletrônicos, ou seja, ao mercado, à tecnologia e ao conforto deles decorrente.

Enquanto sobreviverem os apaixonados pelo livro-livro - folhas de papel impressas, capa, ilustrações, sumário, cheiro, textura, anotações particulares, grifos, gotas de café, amassados, rugas, traças e ácaros (risos) -, os sebos sobreviverão.

Termino, como quem não quer nada, avisando que, todo aquele que comprar um livro eletrônico e que porventura queira desfazer de seus livros empoeirados e espaçosos, EU aceito doações. Sinto um prazer inenarrável ao assistir, dia após dia, à lotação da minha estante, escrivaninha, guarda-roupa... No futuro, quero um quarto inteirinho só pra eles, que seja bem espaçoso, confortável e iluminado. Eles merecem, os meus queridos amigos velhos que, por sinal, estão sempre monstruosamente acompanhados por ácaros e traças!

Para os amantes, o desejo nunca é saciado apenas com os olhos, pois a emoção e sensualidade do toque também são fontes de prazer.



"... é apenas um convite a explorar, um universo
que nos é ainda bastante desconhecido."
Robert Darnton



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELGADO, Márcia. Cartografia sentimental de livros e sebos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CARPINEJAR, Fabrício. O amor esquece de começar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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