"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Você tem que me ler


Claude Monet
Madame Monet and her son (1875)

É antropológico: mulher odeia ser mandada. São séculos e séculos de opressão. Não dê corda, que já cheira a forca. Vale, inclusive, para a masoquista. Gosta de firmeza, não que alguém diga o que ela deve ou não fazer. Não seja autoritário. O feminismo não é conversa de sapatão.

Que aconselhe, não emplaque uma ordem. Que ofereça um palpite, este é despretensioso como um assobio, é soprar uma melodia e permitir espaço para que ela complete a letra. Finja que está no chuveiro – menor o risco de se afogar. Fale cantado. Quem canta nunca será um ditador.

Posso estar plenamente equivocado, sou tão bonito quanto carro de eletricista, mas mulher aprecia é sentir saudade. Quando o homem desaparece e ela corre para procurá-lo. São coisas do cotidiano. Fui percebendo que a conversa com a minha namorada estragava sempre do mesmo jeito. Havia um método no erro. Uma insistência de minha parte. Uma frase morse que truncava o entendimento. Depois que pronunciava aquilo, nada mais funcionava. Da calmaria, ela migrava para um estado nervoso e impaciente. A transformação de sua atitude me baqueava: O que foi? Será que perdi algo? Retrocedia para caçar uma gafe. Cansei até captar o sinal. O homem ainda tenta melhorar sua imagem com o bombril na antena.

Eu dizia “você tem que” a cada início de diálogo. Impositivo, não agia por mal, era um hábito, buscava convencer com “você tem que”. Parecia que tinha a solução dos problemas do mundo. Persuasão é a sedução para quem não tem paciência. Meu caso; não cuidava da linguagem e depois estranhava o silêncio dela. “Você tem que” é um mandado de segurança. É atestar que ela não desfruta de condições de conduzir a própria vida. Virava um segundo pai, determinando suas atitudes. Fugia da cumplicidade, vinha com os mandamentos e as condicionais de comportamento para que merecesse a mesada.

O homem não botou na cabeça que a fragilidade da mulher não é dependência. Ela não precisa ser protegida, e sim respeitada. Existe uma diferença aguda no tratamento. Depois que ela fica braba não adianta remendar. Emerge um pânico das cavernas, o receio de ser puxada pelos cabelos e pelas palavras. Igual é chamá-la de louca no meio de uma discussão.

Quem não encheu o pulmão para desabafar “você está louca!”, com aquele grito catártico, que serve como elevador para todo o prédio? Eu confesso, mais de uma vez. É novamente afirmar que ela não tem domínio, que nem sabe o que está falando e menosprezar sua opinião. Pode até ser louca, mas não chame de louca, senão ela não vai recuperar o juízo. Na história do pensamento, quantas mulheres foram enviadas para o hospício devido a sua autonomia? Quantas receberam eletrochoque ou sofreram lobotomia em função da independência de estilo? Significa um joanete ancestral, um calo antiguíssimo, não pise.

Joana D’Arc não foi uma bruxa. Assim como vassoura não é para voar, é para varrer qualquer sujeira machista dentro de casa.
Fabrício Carpinejar

Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 04/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16478
Republicado no blog do autor: www.http://carpinejar.blogspot.com/

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Era pra ter sido publicado no dia 2, mas como eu estava de férias... Ah, o assunto pode parecer chato, mas o texto é poético e delicado, como seu autor, Affonso Romano de Sant'Anna.


Conviver com os mortos

Está certo que no dia dos mortos a gente vá ao cemitério rever imaginariamente os que amamos. Mas deveria ser diferente. Eles é que deveriam vir nos visitar.

Nisto, a Natureza ou Deus organizou mal as coisas. Mais bonito, mais completo seria se nesse dia os mortos reaparecessem. Não para nos amedrontar, mas para festejar. Que fosse apenas por um dia. Era melhor que nada.

A gente arrumaria a casa, colocaria as coisas do morto limpinhas e em ordem, prepararia o prato que ele mais gostava, separaria sua bebida, reservaríamos seu lugar à mesa, guardaríamos o seu jornal, caso ele ainda se interessasse, e passaríamos o dia inteiro conversando e rindo.
Algum tempo gastaríamos contando as novidades, pois não há certeza se eles, lá do outro lado, prestam tanta atenção no que ocorre aqui. De qualquer forma, era de se supor que não se admirassem muito, que nos olhassem com complacência e ternura.

Seria como se eles tivessem voltado de uma longa viagem.


Na rua encontraríamos outros mortos revividos sentados nos bares, na paria e nos jardins. Cada um sempre fazendo aquilo que gostava quando estava nesse chamado ‘vale de lágrimas’.

Uma das condições desse reencontro anual seria que eles não nos dissessem nada sobre o futuro. Caso contrário, o que deveria ser festa ia se transformar em angustiante sessão de quiromancia. E nada também de perguntas sobre como é a vida do lado de lá. Pois se começássemos a indagar nessa direção a conversa ia acabar degenerando em conflitos religiosos.

Um ia logo dizer: “Tá vendo, num disse que num havia purgatório?”. Outro atalharia: “Bem que eu desconfiava que anjo não tinha asa nem ficava cantando o dia todo”. Alguém poderia perguntar: “Você viu fulano de tal no Céu?” Ou será que foi mesmo para o Inferno como merecia?”

Enfim, ia virar uma cena de eternas fofocas terrenas. E era capaz de nossos mortos se aborrecerem dizendo: “Vocês não têm jeito. Não mudaram em nada, hein?!”

Outra condição para essa visita anual seria, evidentemente, que os mortos não interferissem nos nossos amores atuais. Nisto, certamente, os mortos devem ser mais sábios. Por já terem provado a eternidade, aceitariam ver a esposa, o esposo, o namorado ou a namorada feliz com outra questão sentimental. “É, fulano, é preciso mesmo paciência, no meu temo ele (ou ela) já era assim.”

Se esse diálogo, se essa convivência, se esse ir-e-vir fossem possíveis, garanto que a vida seria muito melhor. A vida, é claro, e a morte. E teríamos que modificar aquele dito clássico: “Os mortos matam os vivos”, para “Os mortos ajudam os vivos a viverem”.

Que seria bom, isto seria. E acho que é uma injustiça isto de cortarem a convivência que a gente tinha e que era tão boa.

Já andei lendo nos especialistas em morte que a morte é a nossa salvação. Pode parecer estranho, mas é isto o que dizem. Uns afirmam que a morte é que dá sentido aos humanos. Outros cientificamente asseveram que se os velhos não morressem a questão do poder e da riqueza seria insolúvel. Os que têm uma interpretação psicológica da vida dizem que a antevisão de uma vida interminável seria insuportável.

Mas não estou propondo aqui a abolição da morte. Proponho, sim, uma coisa mais simples, mais humana e transcendental: que pelo menos uma vez ao ano acabem com essa barreira e seja permitida a imorredoura confraternização física entre os de lá e os de cá.

Se Deus (ou a Natureza) quiser anotar essa reivindicação, terá minha eterna gratidão.

Enquanto isso não ocorre, vamos retornando do cemitério, ficando em casa aguardando ou revivendo nossos mortos com carinhosa emoção. E se um deles quiser aparecer, será uma festa. Encontrará a mesa posta, os mesmos braços abertos e uma vontade danada de botar a conversa em dia.
 

Extraído do livro que serviu de inspiração para a criação deste blog, "Tempo de delicadeza", de Affonso Romano de Sant'Anna.