"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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domingo, 18 de dezembro de 2011

TESTAMENTO DE DEUS

Antes de Deus se lançar do ápice das nuvens, minutou uma ultima carta aos fundamentais filhos: OS ARTISTAS.
Poeta: Minha filial primogênita. Instituí-te antes de criar a alienação dos homens, te fiz ameaçador e doloroso, te arrisquei na vida antes de eu mesmo conhecê-la. Traja o fardo do louco porem todos que testemunham algo pela primeira vez ganham de mim a frente de sentirem-se insanos. Você me apóia a divulgar os primeiros caminhos da minha inconseqüência; confio mais na sua aflição que no meu domínio. Sei que és são, volátil e descuidado, me orgulho da sua imutável perda de si e de mim, mas nunca esqueça do meu caçula ATOR ; apesar de sempre púbere, é ele quem estará a exalar nossa palavra. Poeta, deixo-te o vão da minha ausência, uma faca afiada de palavras, e um matagal de coisas a serem desvendas só por ti.
Pintor – Meu eterno infante. Continue confinado no imaculado branco, arrebate sempre a virgindade do invisível com a intenção de manchar o nada. Pinte e burle como se enfeitasse o seu próprio caixão, essa é a maneira mais honesta de decorar a nossa casa. Só fiz o fogo, a terra, o ar e a água para que, meu filho, tivesse uma palheta de cores infinita na pintura da mais complexa das telas: a imaginação. Você é o filho mais cúmplice do claro e do escuro. Deixo-te tudo entre o céu e a terra que borra, risca, mancha, suja... para que você contorne algo parecido com o sentir a minha integridade (hoje tão brega).
Musica – Filha, em primeiro lugar, calma! Você é a única que não precisa berrar para ser ouvida. Dei-te de lambuja as notas para que nunca careça argumentar sem procissão. Nunca fique serena, nem discorra tanto, apenas siga a métrica do notar o ruído do viver. Está bem alimenta pela seiva da melodia: existem mais mistérios entre harpa,a voz, e o tamborim do que pode supor nossa vã filosofia. Na aurora, antes de içar da cama, lembre sempre que o ouvido alheio é uma fresta, passagem secreta que deixo aberta para você incomodar os adaptados a ilusão. Deixo-te a variação do som da chuva, o susto dos pratos quebrados dos trovoes, o reco-reco das ondas, o surdo de gota em gota, o acorde de gole em gole sempre no tom para que faça essa vida superficial sambar.

ATOR – Meu filho mais humilde! Insiste em contar quem são seus irmãos. Ator, meu filho mais perdido:quer ser todos em um só! Nunca te pediria calma!!! Herdou meu DNA mais ambíguo, sabe pouco de tudo, porem pesquisa o muito de cada qual. Teu romantismo é o oposto do câncer: devolve as esperanças para quem achava que estava morto. Teus irmãos te amam tanto, nunca esqueça que eles te empurravam no parque da infância dos gestos. Não faça do teu ego sua própria chacina. Você é o mais charmoso e trabalhador dos filhos. O mapa que os poetas escrevem só você pode chegar ao fim. Não julgue, descubra-se sempre no outro, isso te tornará um pouquinho mais do todo, e te fará um artista mais infinito. Cuidado: você é o único que pode fazer Deus e o diabo com a mesma honestidade, a novela e o teatro sem a mesma fama, a riqueza e a pobreza no mesmo tapa. Cuidado filho aguerrido. Existem no globo tantos falsos profetas, e você que compra por amor o valor do homem, lembre-se sempre que tens a responsabilidade de levar teus iluminados irmãos poetas, músicos, artistas plástico na corcunda...Para ti deixo: A face para tapear a todos menos a sua divinal família, o choro para que desabe quando os outros precisarem e a comedia para aliviar os doídos do dia-dia.
Público – Meus tantos filhos das tantas e melhores putas espalhadas nas esquinas das minhas invenções. Não exagerem no entusiasmo! Basta um beijo apropriado, do homem incorreto, para se ser feliz para o resto da ferida. Você, são os donos da veracidade de um todo, mas não se imêmore de julgar a própria solidão, ela sim é a maior virtude da multidão: No meio do bando abanar o isolamento, o respirar da única hipótese de si. Meu filho público, te fiz toda noite que trepei na simplicidade da minha divindade... brotem os que acordam para o contemplar do sobre-viver. Para vocês deixo: chinelos para doar ao poetas que podem gastar atenção com o chão que tem derretido os pés dessa arte sutil, o youtube para escolher entre o mundo inteiro o link que trás de volta a musica universal, a gozada na cara independente dos musicos de ejaculação- precoce! Aos desenhistas, cineasta, pintores, palhaços (a todos do circo)...fodam –se o público que não tem coragem de se prestar no outro...
Público é público, o nome mesmo diz: de todos... aos alienado sempre uma próxima chance!

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Soberania
Manoel de Barros


Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das idéias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.

Texto extraído do livro (caixinha) "Memórias Inventadas - A Terceira Infância", Editora Planeta - São Paulo, 2008, tomo X, com iluminuras de Martha Barros.

Saiba mais sobre o autor e sua obra visitando "
Biografias".

segunda-feira, 31 de outubro de 2011


"Ninguém me fará calar, gritarei sempre que se abafe um prazer, apontarei os desanimados, negociarei em voz baixa com os conspiradores, transmitirei recados que não se ousa dar sem receber, serei, no circo, o palhaço, serei médico, faca de pão, remédio, toalha, serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia, serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais: tudo depende da hora. E de certa inclinação feérica, viva em mim qual um inseto."  CDA

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"Hoje quero falar da tristeza. Não me pergunte por quê, pois eu mesmo não sei. A tristeza não pede licença, não se explica... Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora. Ficam belas-tristes as nuvens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores, belos-tristes os objetos silenciosos do meu escrítório, e até mesmo o café da manhã fica triste-belo... A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento que se tem ante uma beleza que se perdeu...

Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei no Grupo, o poeta visitando paisagens de outros tempos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. "São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou..." Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que tristeza é isto: estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber que, cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. A tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. "Quem nos desviou assim", perguntava Rilke, "para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?" Não esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meirelles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: "Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se..." Tristeza é isto, quando o belo e a despedida coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tornaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo.

"E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr-do-sol... E estamos perdidos de novo..." (E. Browining). Mas, que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr-do-sol: "Tudo o que está próximo se distancia". Ao que Borges comenta: "Goethe se referia ao crepúsculo, mas também à vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando". O pôr-do-sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belos em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nosso adeus.

A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. "As nuvens à volta do sol que se põe", dizia Wordsworth, "ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens..." E assim, os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio "pedaço arrancado de mim", mutilação do meu corpo. Exercício de saudade; tornar de novo presente um passado que já se foi. "Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu..."

Lembro-me de Álvaro de Campos dizendo da dor que sentia ao ver os navios que se afastavam do cais. " Ah! Todo cais é uma saudade de pedra... Todo atracar, todo largar de navio é - sinto-o em mim como meu sangue - inconscientemente simbólico, terrivelmente ameaçador de significações metafísicas. E, quando o navio larga do cais e se repara de repente que se abriu um espaço entre o cais e o navio, vem-me uma névoa de sentimentos de tristeza que me envolve com uma recordação de uma outra pessoa que fosse misteriosamente minha..."

E é só agora Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema "Ausência", onde você afirma não lastimar o espaço vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida, ferida que não se deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. "Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não o lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim..." Não é estranho isto, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar.

Brinco com a minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel..."

Rubem Alves.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quando setembro vier...

Quando setembro vier, de tão azul, o céu parecerá pintado. E nós embarcaremos logo rumo às ilhas Cíclades.
Houvesse cortinas no quarto, elas tremulariam com a brisa entrando pelas janelas abertas, de manhã bem cedo. Acordei sem a menor dificuldade, espiei a rua em silêncio, muito limpa, as azaléias vermelhas e brancas todas floridas. Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul. Respirei fundo. O ar puro da cidade lavava meus pulmões por dentro. Setembro estava chegando enfim.
Na sala, encontrei a mesa posta para o café — leite e pão frescos, mamão, suco de laranja, o jornal ao lado. Comi bem devagarinho, lendo as notícias do dia. Tudo estava em paz, no Nordeste, no Oriente Médio, nas Américas Central, do Norte e do Sul. Na página policial, um debate sobre a espantosa diminuição da criminalidade. Comi, li, fumei tão devagarinho que mal percebi que estava atrasado para o trabalho. Achei prudente ligar, avisando que iria demorar um pouco.
A linha não estava ocupada. Quando o chefe atendeu, comecei a contar uma história meio longa demais, confusa demais. Só quando ele repetiu calma, calma, pela terceira vez, foi que parei de falar. Então ele disse que tinha acabado de sair de uma reunião com os patrões: tinham decidido que meu trabalho era tão bom, mas tão bom que, a partir daquele dia, eu nem precisava mais ir lá. Bastava passar todo fim de mês, para receber o salário que havia sido triplicado.
Desliguei um pouco tonto. Então, podia voltar a meu livro? Discreta e silenciosa como sempre, a empregada tinha tirado a mesa. No centro dela, agora, sobre uma toalha de renda branca, havia rosas cor de chá, aquelas que Oxum mais gosta. No escritório, abri as gavetas e apanhei a pilha de originais de três anos, manchados de café, de vinho, de tinta e umas gotas escuras que pareciam sangue. Reli rapidamente. E a chave que faltava, há tanto tempo, finalmente pintou. Coloquei papel na máquina, comecei a escrever iluminado, possuído a um só tempo por Kafka, Fitzgerald, Clarice e Fante. Não, Pedro não tinha ido embora, nem Dulce partido, nem Eliana enlouquecido. As terras de Calmaritá realmente existiam: para chegar lá, bastava tomar a estrada e seguir em frente.
Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar, o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas gregas como tínhamos combinado naquela noite. Se podia voltar, insistiu, para sermos felizes juntos. Eu disse que sim, claro que sim, muitas vezes que sim, e aquela voz repetiu e repetia que me queria desta vez ainda mais, de um jeito melhor e para sempre agora. Os passaportes estavam prontos, nos encontraríamos no aeroporto: São Paulo/Roma/Atenas, depois Poros, Tinos, Delos, Patmos, Cíclades. Leve seu livro, disse. Não esqueça suas partituras, falei. Olhei em volta, a empregada tinha colocado para tocar A sagração da primavera, minha mala estava feita. Peguei os originais, a gabardine, o chapéu e a mala. Então desci para a limusine que me esperava e embarquei rumo a.
PS — Andaram falando que minhas crônicas estavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farrow em A cor púrpura do Cairo: “Encontrei o amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? Agente não pode ter tudo na vida...” Fred e Ginger dançam vertiginosamente. Começo a sorrir, quase imperceptível. Axé. E The End.

O Estado de S. Paulo, 27/8/1986 - In Pequenas Epifanias

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sobre a morte e o morrer

 
Pietà do Vaticano - Michelangelo, 1499.

Rubem Alves

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo. 

domingo, 14 de agosto de 2011

Como nossos pais


Composição: Belchior
Não quero lhe falar,
Meu grande amor,
Das coisas que aprendi
Nos discos...
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa...
Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens...
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço,
O seu lábio e a sua voz...
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração...
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais...
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais...
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando...
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem...
Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando vil metal...
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo,
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais...

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Arte de ser feliz

Cecília Meireles


Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprova? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda.  À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava história. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que ouvisse, não entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham  tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu que não participava do auditório imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para uma cidade que parecida feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre parecem personagens de Lope da Vega. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outras dizem que essas coisas só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Meireles, Cecília. Escolha seu sonho. 3ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. p. 25-27.













quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Uma oração


Jorge  Luis Borges

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.


Paraty/RJ, 2010 - Mariana

Jorge Luis Borges nasceu em 1899 na cidade de Buenos Aires, capital da Argentina e faleceu em Genebra, no ano de 1986. É considerado o maior poeta argentino de todos os tempos e é, sem dúvida, um dos mais importantes escritores da literatura mundial.

"Seu texto é sempre o de uma pessoa que, reconhecendo honestamente a fragilidade e as limitações do ser humano, nos coloca diante de reflexões nas quais, com freqüência, está presente o nosso próprio destino." (Miguel A. Paladino).


Inauguração Sesc Palladium


Inauguração Sesc Palladium

divulgação
Depois de uma espera de seis anos o Palladium volta a funcionar sob a gestão do Sesc. Saiu de cena o cinema e entrou um Centro Cultural. O Sesc Palladium será inaugurado dia 3 de agosto com uma série de eventos artísticos e culturais marcados até o dia 7 de agosto. Nos espaços do Centro Cultural, apresentações teatrais, shows, performances artísticas e filmes. Ao todo, serão cinco dias de atrações, com o melhor da arte mineira.

No primeiro dia, o SESC receberá Milton Nascimento e cantores do Clube da Esquina, como Lô Borges, Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando Brant e Márcio Borges. Juntos, os músicos interpretarão grandes clássicos que marcaram uma época, numa cerimônia só para convidados.
De 4 a 7 de agosto, a programação será aberta ao público. Dentre as atrações que se apresentarão no Grande Teatro (antigo Cine Palladium), estão: a Mimulus Cia. De Dança, com o espetáculo "Por um Fio", a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e o Grupo Galpão com a peça "Till - A saga de um herói torto". Quem encerra a semana de inauguração, com chave de ouro, é a banda mineira Skank. Os ingressos para todas as apresentações são gratuitos e limitados.
Com o objetivo de democratizar a arte, a distribuição dos ingressos da semana de inauguração será feita nas Unidades do Sesc, contemplando os frequentadores das unidades, além de alunos de instituições da rede pública. Nesse caso, as entradas para os eventos serão retiradas nas próprias escolas.
Outra novidade trazida pelo SESC são as sessões gratuitas do cinema. Todas as exibições serão de filmes que estão fora dos circuitos comerciais.
O novo Palladium agora abriga o Grande Teatro, local do antigo cinema, com capacidade para receber 1.321 pessoas. Tem, ainda, Teatro de Bolso e Cinema, com produções que privilegiam filmes fora do circuito comercial, ambos com 80 lugares, café, acervo artístico literário - com as mais importantes obras sobre as artes - loja de artesanato, galeria de arte, sala para cursos, espaços multiusos e estacionamento com capacidade para 100 veículos.

Inauguração Sesc Palladium 3 a 7 de agosto de 2011Quarta a domingoEntrada gratuita com ingressos distribuídos nas unidades do SESC das 10h às 13h, no dia do evento.Bilheterias: Av. Augusto de Lima, 420, Centro - Belo Horizonte/MGRua Rio de Janeiro, 1.046, Centro - Belo Horizonte/MGInformações: (31) 3273-6974 
Confira a programação completa do Sesc Palladium, de 3 a 7 de agosto:

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Festival Musical Minas


Vai aí uma dica legal....vários shows acontecerão nas praças de BH, vale a pena conferir!!!


Dia dos Namorados com Festival Musical Minas

Muita música para embalar os corações apaixonados na capital mineira.

No dia 12 de junho, Dia dos Namorados, BH recebe o Festival Musical.

O evento leva diversas atrações musicais a quatro praças de Belo Horizonte, em diferentes regiões da capital mieneira.

Ao todo, serão dezesseis atrações musicais que farão das praças de BH palco da música brasileira. As apresentações são gratuitas e acontecem a partir das 10h nas praças Duque de Caxias (Santa Tereza), Liberdade (Savassi), Estação (Centro) e Parque Ecológico Lagoa do Nado (Pampulha).

O objetivo do Festival é promover o encontro do público com a música mineira e outras formas de expressão da música brasileira. O Festival Musical recebe artistas como Pato Fu, Renegado, Milton Nascimento, Roberta Sá e Maria Gadú.

Onde?
Praça da Liberdade
Quando?
10h: Oficina Grupo Trampulim (MG)
11h: Palavra Cantada (SP) – infantil
15h30: Pato Fu – Música de Brinquedo (MG)
17h: Lô Borges e Pedro Morais (MG)

Onde?
Praça Duque de Caxias
Quando?
10h15: Pequeno Cidadão (SP) – infantil
12h: Oficina do Grupo Trampulim (MG)
14h30: Karina Buhr (PE)
15h40: Renegado (MG)
16h50: Marcelo Jeneci (SP)

Onde?
Parque Ecológico Lagoa do Nado
Quando?
10h30: Grupo Curupaco (MG)
12h: Viva Viola e Meninas de Sinhá (MG)
14h30: Oficina do Grupo Trampulim (MG)
15h40: Marku Ribas (MG)
17h: Zé da Guiomar (MG)

Onde?
Praça da Estação
Quando?
17h30: Oskestra Rumpilezz (BA)
19h: Aline Calixto (RJ) convida Carlinhos Brown (BA)
20h: Milton Nascimento (MG) convida Maria Gadú (SP) e Roberta Sá (RN)
 

sexta-feira, 13 de maio de 2011




NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS




Não vou mais lavar os pratos.
Nem limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito.
Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo mais a bagunça das folhas no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética, a estática.
Olho minhas mãos bem mais macias que antes e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Agora sinto qualquer coisa.
Não vou mais lavar os tapetes.
Tenho os olhos rasos d'água.
Sinto muito.
Agora que comecei a ler quero entender o por quê, por que e o por quê.
Exintem coisas.
Eu li,e li, e li...
Eu até sorri e deixei o feijão queimar.
E olha que feijão sempre demora para ficar pronto...
Considere que os tempos agora são outros...
Ah, esqueci de dizer: não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere,você nem me chame.
Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que entendi,você foi o que passou.
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto.
Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas e encobrir as sujeiras inteiras, nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para ali e de lá para cá.
Desinfetarei minhas mãos.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Sendo assim não lavo mais nada e olho a poeira no fundo do copo.
Vejo que sempre chega o momento de sacudir, de investir, de traduzir.
Não lavo mais os pratos.
Li a assinatura de minha lei áurea.
Escrita em negro maiúsculo, em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli.
Não lavo mais os pratos.
Quero travessas de prata, cozinha de luxo e jóias de ouro.
Legítimas.
Está decretada a Lei Áurea.

Cristiane Sobral

A fábula dos porcos assados

O texto original deste trabalho, em espanhol, circulou entre os alunos do curso de pós-graduação da Universidade de Piracicaba em 1981. A sutileza com que o autor satiriza um dos problemas de nossos tempos fez com que imediatamente o texto chamasse a atenção de alunos e professores, convertendo-se em tema de conversas e debates. Aos leitores, a Fábula dos Porcos Assados:

Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque. Os porcos que ali viviam foram assados pelo fogo e suas peles duras pururucaram, tornando-se apetitosamente crocantes. Os homens daquela região, habituados a comer carne crua, degustaram os porcos transformados em torresmos e acharam delicioso o sabor e o aroma da carne assada. A partir dessa revolucionária experiência gastronômica, toda vez que desejavam comer porco assado e torresmo incendiavam todo um bosque inteiro.

Os homens daquela região montaram um aparato técnico, científico e administrativo monumental para o assamento de porcos. Este aparato foi crescendo assustadoramente passando a envolver milhões de pessoas.

Foram desenvolvidas máquinas e equipamentos sofisticados para executar tarefas de diversos tipos; funcionários foram especialmente treinados para acender fogo e incendiar bosques e alocados em núcleos regionais para trabalhar em períodos diurnos e noturnos. Surgiram, ainda, especialistas em ventos, em chuvas, em árvores, em bosques, em pururuca e torresmo e, enfim, especialistas de todos os tipos possíveis e imagináveis. Os cargos foram surgindo sem parar: o de diretor geral de assamento, o de diretor de técnicas ígneas com seu Conselho de Assessores, o de administrador geral de reflorestamento, o de diretor disso e daquilo, além de centenas de cargos de chefia e sub-chefia. Foram criados departamentos para o treinamento profissional em Porcologia, institutos superiores de cultura e técnicas alimentícias e diversos centros responsáveis pelas reformas de caráter igneooperativo. Foi formulado um Plano Nacional para a Formação de Bosques, Planabo, cuja meta plurianual seria implantar bosques de acordo com as técnicas mais modernas de reflorestamento. Foram trazidos do exterior cientistas para o estudo e seleção das melhores variedades de árvores e sementes, para o estudo de fenômenos pluviométricos, para o estudo do fogo e de matrizes de porcos e para desenvolver pesquisas sobre o extraordinário fenômeno da pururucagem. Poderíamos ficar dezenas de anos seguidos descrevendo o faraônico aparato instituído para coordenar, implementar, controlar e manter todo o gigantesco processo.

Apesar da enorme soma de recursos públicos investidos no funcionamento deste gigantesco aparato, no processo de assamento os animais ficavam, ou parcialmente crus, ou demasiadamente tostados, desagradando milhões de paladares cada vez mais refinados.

As queixas eram justificadas: os impostos pagos para custear o aparato eram escorchantes, a poluição causada pelos incêndios e a qualidade da carne assada, devido, supostamente, à ampliação da escala de produção, cada vez piores. Foram aumentando os protestos na imprensa, crescendo as insatisfações na opinião pública, os políticos aproveitando para fazer promessas de campanha e as mobilizações da comunidade tornando consensual a necessidade urgente de reforma no modelo de assamento de porcos.

Congressos, seminários e conferências passaram a ser realizados na busca de uma solução para o problema. Apesar do extraordinário esforço empreendido por milhares de especialistas em assamento de porcos, inclusive com títulos de doutor obtidos no exterior, os resultados alcançados eram desanimadores. Repetiam-se, assim, os congressos, seminários e conferências. Os especialistas continuaram insistindo que as causas do mau funcionamento do sistema eram a indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam ficar no momento do incêndio do bosque; a natureza indomável do fogo e dos ventos; e, ainda, a má seleção das variedades de árvores, muitas delas inadequadas para o assamento, a excessiva umidade da terra e o insatisfatório serviço de meteorologia que não fornecia informações exatas sobre o lugar, a hora e a quantidade da precipitação de chuvas. Os especialistas formaram correntes de pensamento e desenvolveram doutrinas que geraram disputas acirradas nas Universidades. Milhares de obras de cunho científico foram publicadas, lançadas revistas com prestígio internacional, criados cursos de pós-graduação para formar cientistas além de institutos para desenvolver pesquisas sobre porcos e assamento de porcos.

Até que, certo dia, João Bom-Senso, um incendiador categoria C, nível 4, classe INC, percebeu que o problema era de fácil solução. Bastava, primeiramente, matar, limpar e cortar o porco escolhido e, depois, colocar a carne numa armação metálica sobre carvão em brasa, até que, sob o efeito do calor, a carne ficasse assada. A grande vantagem desse método era a possibilidade de cada um temperar a carne de acordo com o seu paladar e assá-la em sua própria casa reunindo os amigos para beber, conversar, solidificar laços de cunho político, religioso, profissional e/ou apenas afetivo.

Tendo sido informado sobre as idéias subversivas deste perigoso funcionário, o diretor geral de assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e, depois de ouvi-lo pacientemente, disse-lhe em tom incisivo:

— Tudo o que o senhor me explicou é teoricamente muito bonito, diria até maravilhoso, mas jamais funcionaria na prática. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotécnicos, caso viéssemos a aplicar a sua bem intencionada idéia? Onde seriam empregados os pesquisadores que produzem todo o conhecimento necessário para aperfeiçoar as técnicas de incêndio e de reflorestamento?

— Não sei, disse João.

— E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos e os operadores de máquinas para destrinchar carne assada?

— Não sei.

— E os cientistas que ficaram anos seguidos especializando-se no exterior e cuja formação custou tantos recursos ao país? E os pesquisadores que têm trabalhado na elaboração do Programa de Reforma e Melhoramento do Sistema de Assamento de Porcos? O quê faço com eles se a solução que o senhor me traz resolver tudo?

— Não sei, repetiu João, encabulado.

— O senhor percebe que a sua “maravilhosa” idéia pode desencadear uma crise de proporções catastróficas no país? O senhor não vê que se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito, muito, tempo atrás? O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os milhares de técnicos, engenheiros e pesquisadores com PhD e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas, para assar porcos, e bye-bye para todos vocês! O que o senhor espera que eu faça com os quilômetros e quilômetros quadrados de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos e nem têm folhas para dar sombra e abrigo aos pássaros?

— Não sei, não, senhor.

— O senhor não reconhece que nosso Instituto de Porcopirotecnia é constituído por personalidades científicas do mais extraordinário gabarito?

— Sim, eu acredito que sim.

— O que eu faria com figuras de tão grande importância para o país?

— Não sei.

— Viu? O senhor não sabe de nada! O que precisamos são soluções viáveis para problemas práticos específicos. Por exemplo, como melhorar as anemotécnicas atualmente utilizadas, como formar rapidamente profissionais para preencher as vagas existentes na região Oeste do país ou como construir instalações para porcos com mais de sete andares que sejam funcionais. Temos que caminhar muito ainda para aperfeiçoar o sistema, o senhor me entende? O que precisamos, acima de tudo, é de sensatez e não de belas intenções!

— Realmente, eu estou perplexo!, respondeu João.

— Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia espalhando por aí a sua insensata idéia. Pode ser muito perigoso. O problema é bem mais sério e complexo do que o senhor jamais poderia imaginar. Agora, entre nós, recomendo que não insista nessa sua idéia boba pois isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. Não por mim, o senhor entende. Eu falo isso para o seu próprio bem, porque o compreendo, entendo perfeitamente o seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menos compreensivo, não é mesmo?

João Bom-Senso não falou mais um a. Meio atordoado, meio assustado, envergonhado por ter transmitido a sua estúpida idéia ao diretor geral, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu. Os boatos se espalharam e tornou-se hábito dizer em reuniões de Reforma do Sistema, em tom de chacota, de forma cínica até, que falta Bom-Senso.
 
Texto extraído do site: http://www.recantodasletras.com.br/
 
 
 

segunda-feira, 9 de maio de 2011


ARTE DE AMAR


Não faço poemas como quem chora,

nem faço versos como quem morre.

Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira

quando muito moço; achava que tinha

os dias contados pela tísica

e até se acanhava de namorar.

Faço poemas como quem faz amor.

É a mesma luta suave e desvairada

enquanto a rosa orvalhada

se vai entreabrindo devagar.

A gente nem se dá conta, até acha bom,

o imenso trabalho que amor dá para fazer.



Perdão, amor não se faz.

Quando muito, se desfaz.

Fazer amor é um dizer

(a metáfora é falaz)

de quem pretende vestir

com roupa austera a beleza

do corpo da primavera.

O verbo exato é foder.

A palavra fica nua

para todo mundo ver

o corpo amante cantando

a glória do seu poder.


Thiago de Mello

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cidadezinha qualquer


Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
 
 De Alguma poesia (1930)
 

quarta-feira, 16 de março de 2011


A bunda que engraçada

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai pela frente do corpo.

A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio.
Anda por si na cadência mimosa,
no milagre de ser duas em uma,
plenamente.

A bunda se diverte por conta própria. E ama.
Na cama agita-se.
Montanhas avolumam-se, descem.
Ondas batendo numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda.
Vai feliz na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 5 de março de 2011


Arte: Estúdio "B"

quinta-feira, 3 de março de 2011

Estou me guardando pra quando o carnaval chegar...



Quando o carnaval chegar

Composição: Chico Buarque 

Quem me vê sempre parado,
Distante garante que eu não sei sambar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Eu tô só vendo, sabendo,
Sentindo, escutando e não posso falar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Há quanto tempo desejo seu beijo
Molhado de maracujá...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

E quem me ofende, humilhando, pisando,
Pensando que eu vou aturar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

E quem me vê apanhando da vida,
Duvida que eu vá revidar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Eu vejo a barra do dia surgindo,
Pedindo pra gente cantar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Eu tenho tanta alegria, adiada,
Abafada, quem dera gritar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Sonho impossível



Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer
O inimigo invencível
Negar
Quando a regra é vender
Sofrer
A tortura implacável
Romper
A incabível prisão
Voar
Num limite improvável
Tocar
O inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão

Composição: Joe Darion e Mitch Leigh
Versão Chico Buarque e Ruy Guerra/1972
Para o musical para O Homem de La Mancha, de Ruy Guerra


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


A Noite Estrelada, Vincent van Gogh, 1889.


Eu tenho uma espécie de dever,
de dever de sonhar
De sonhar sempre,
Pois sendo mais do que
Um espectador de mim mesmo,
Eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E assim me construo a ouro e sedas,
Em salas supostas, invento palco,
Cenário para viver o meu sonho
Entre luzes brandas
E músicas invisíveis.

Fernando Pessoa

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Canção amiga



Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.





"Canção Amiga" é um poema no qual Drummond expressa o ideal de construir uma poesia capaz de despertar a consciência dos adultos e servir de canção de ninar para as crianças. Em 1989, quinze meses após sua morte, começou a circular a cédula de 50 cruzados novos, que homenageava o poeta e trazia no anverso este poema. Infelizmente, com a espiral inflacionária e a rápida sucessão de moedas (cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real), a homenagem durou pouco. A cédula (veja mais abaixo) saiu de circulação em outubro de 1992. "Canção Amiga" também foi musicada por Milton Nascimento. A canção está no CD Clube da Esquina 2, EMI, 1978.
 
 



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Passos de felicidade


Em mim, uma felicidade desapontada caminhava em busca de algo que lhe fizesse sentir a si. Tudo estranho na cidade do meu coração. Um peito de repente despovoado. Uma grande fuga se sucedeu ali, no mundo onde me tornei um Deus solitário sem saber tratar a natureza desses sentimentos forasteiros que residem em minha existência. Guerra declarada da dor, capitã daquela nau de anseios perdidos, versus uma felicidade atrevida por afrontar a amargura sem esquadrão para vencer aquela poderosa agonia que domava meu íntimo. Eu, durante meu cotidiano apenas assistia enxovalhado na cama pela angustia, sem saber como amparar aquilo que era só meu.

Caio Sóh

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011


Arte: Estúdio "B"

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A hora do cansaço

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.


Carlos Drummond de Andrade
In Corpo, 1984.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Doação às vítimas das enchentes


Doe alimentos não perecíveis, água potável, material de higiene pessoal e limpeza, roupas, calçados, cobertores e roupas de cama e banho A Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (Cimos), órgão do Ministério Público de Minas Gerais, está recebendo doações para as vítimas das enchentes.
Faça sua doação na Rua Dias Adorno, 367, 1° andar, bairro Santo Agostinho, Belo Horizonte.
Período: 19/01 a 19/02/2011.



CHOVE. HÁ SILÊNCIO 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O triunfo da morte no Rio


O triunfo da morte (1562) - Pieter Brueghel

A INCONSTITUCIONAL TRAGÉDIA DO RIO
 
“Minha alma canta/Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar/Praia sem fim
Rio, você foi feito pra...”
(Tom Jobim)

 "É fácil por a culpa da tragédia do Rio em quem vai morar perigosamente nas encostas dos morros. É difícil imaginar-se na situação de quem não tem onde morar e tem de construir nos barrancos seus improvisos de casa. É fácil por a culpa no governo por não adotar medidas preventivas contra a tragédia. É difícil ser governo e ter que administrar o espólio da falta de planejamento urbano e irresponsabilidades acumuladas por gestões anteriores. Prevenir as tragédias não dá votos. Impedir que sem-tetos e construtoras inescrupulosas ocupem áreas de risco, tira votos. E a democracia, na prática política, não é mais do que ume engenharia eleitoreira.

Quer saber? Há leis e papeis bastantes para evitar ou, pelo menos, para reduzir os danos causados pelas enchentes e desmoronamentos de encostas. Anos sim e outros também. Talvez você não saiba, mas existe um sistema nacional de defesa civil, integrado por vários órgãos de todos os entes federativos, sob a coordenação de uma secretaria do Ministério da Integração Nacional, chamada de Sedec. No âmbito dos Municípios, existe a Comdec, uma coordenaria especializada em defesa civil. Sabe qual o objetivo da “defesa civil”? Reduzir a ocorrência e o impacto de desastres, por meio de ações de prevenção, de preparação para emergências e de resposta adequadas a suas ocorrências.

A organização do sistema é recente, data de 2 de julho de 2010, com a edição da medida provisória 494. Mas já havia disposições legais há tempo. Embora com raízes mais antigas, como a Diretoria Nacional do Serviço da Defesa Civil de 1943, somente após os estragos causados pelas grandes enchentes que ocorreram no Sudeste em 1966, passou-se a levar o assunto mais a sério com a organização da primeira “Defesa Civil Estadual do Brasil”. Onde? No antigo Estado da Guanabara, hoje, Rio de Janeiro. Em 1969, foi editado o Decreto-Lei n. 950, criando o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) e prevendo um plano nacional de defesa permanente. Na verdade, somente em 1988, criou-se um sistema nacional de defesa civil com propósitos mais assentados de planejamento e coordenação contra eventos e catástrofes. Para não ficar somente no tema específico da defesa civil, recordo-me do Estatuto das Cidades, Lei 10257/2001, que é uma obra-prima de normas para adoção de políticas urbanas sustentáveis.

Não pare ainda por causa dessa citação de leis. A própria Constituição de 1988 prevê, em diversos artigos, ações relativas à defesa civil (arts. 22, XXVII, e 144, § 5º) e ao adequado ordenamento territorial, ao planejamento e ao controle do uso do solo (arts. 21, IX, XVIII;. 25, § 3º;. 30, VIII e 182, § 1º) Destacaria dois deles que nos oferecem a noção do todo: Cabe à União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (art. 21; XVIII). É tarefa municipal (eis o segundo destaque) promover a política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182).

O volume de chuva é inconstitucional, vejo dizer uma autoridade. Pobre papel décor que recebe de tudo, por tudo e em nome de tudo. Tinta não lhe falta, todavia. Tintas de vergonha mais do que de prescrição. Na verdade, o que sobra de água no Rio falta de vontade política para efetivar uma política decente (constitucional) de uso e ocupação do solo, sem descaso, sem tentações eleitoreiras ou patrimoniais. A ganância de alguns políticos (e seus comparsas privados) é que é inconstitucional; a incompetência é inconstitucional; as mortes são inconstitucionais; a tragédia anunciada, por tudo, por todos, por nós que não sabemos fazer bem política e, com ela, os políticos, é desgraçadamente inconstitucional. É fácil ser governo assim; é difícil ser povo soterrado."

José Adércio, em 18.1.2011

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

NOSSO ALTAR PARTICULAR

Há quem decore a vida na ponta da língua,
outros rabiscam o próximo passo
na ponta do acaso.
Aqui, nessa estação, onde um outono
instrumental inspira a queda das palavras,
minha força escorre poemas
pelo cedro desse palco, assim como
meus pés cravam a fidelidade aos
sonhos desses guris atrevidos que
aqui brotarão virtuosos, aguerridos
com seus estilingues de cordas
vocais de nylon e de aço, apedrejando
a covardia dos homens secretos a si.
Fábula em partituras da Gata de Botas!
Maria e seus Joões cantam o caminho
de volta para o íntimo,
hasteiam leves uma bandeira
toda bordada de mocidade,
doces rendas melódicas, ponto a ponto
terras descobertas, a cada acorde
um ensaio para acordar
um moço jeito de existir
sem a intenção de trocar de mundo,
apenas unir quem não coube
em sua acidez.
Inventamos aqui, nesse solo fértil,
veraneio da arte, palco do palhaço
“rendez-vous”,
um baile de amigos em pleno
velório do falecido monstro que cobria
o horizonte de quem ama o que se pode ser.
Aqui jazz uma solidão ignorante.
Naufragam agora todas as farsas
escritas pelo cão.
Dionísio, arauto de tudo que se une
fantasticamente, abre alas desse
concerto para os desconcertados
se banharem.
A partir de hoje uma nau de solidão
navegará aliviada dos apegos
impossíveis, e uma nova geração
desvendará a ilha daqueles que sonham
antes de dormir.
Notas serão como uma leve pluma,
lançadas ao vento com destino certo:
afago no espírito, cócegas na alma,
mimo na paz, inibir agonias,
afrouxar todo o receio de ser
devaneador.
Na Rua do Acalanto, primeiro peito
franco à direita, casa de janelas
sempre abertas e dispostas ao novo,
jardim de lindas rosas de espinhos
prósperos, varanda ao infinito,
mansão cor de legítimo coração,
em frente ao público dessa nossa solidão.
Ali a pena dançará e nenhuma
câimbra na felicidade,
nem faíscas de isolamento
nos fará desistir de estarmos
“todos juntos”.

Caio Sóh