"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

Pesquisar este blog

sábado, 23 de outubro de 2010


FOTOGRAFIA

Composição: Tom Jobim
  
Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo e o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz,
Escureceu
O sol caiu no mar
E aquela luz
Lá em baixo se acendeu...
Você e eu

Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção
Para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções
Têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo 

  
ANOS DOURADOS

Tom Jobim e Chico Buarque

Parece que dizes: "te amo, Maria"
Na fotografia estamos felizes
Te ligo afobada e deixo confissões no gravador
Vai ser engraçado se tens um novo amor
Me vejo a teu lado
Te amo? Não lembro
Parece dezembro de um ano dourado
Parece bolero, te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Não sei se ainda te esqueço de fato
No nosso retrato pareço tão linda
Te ligo ofegante e digo confusões no gravador
É desconcertante rever o grande amor
Meus olhos molhados, insanos, dezembros
Mas quando eu me lembro são anos dourados
Ainda te quero, bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais




quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Anoitecer em outubro




ANOITECER EM OUTUBRO

Ferreira Gullar


A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier


GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 65.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Escrito na orelha...


Após onze anos da publicação de seu último livro de poemas, Muitas vozes, Ferreira Gullar entrega ao público, agora, este Em alguma parte alguma, em que se dá prosseguimento à reflexão poética sobre a existência, difere dos livros anteriores ao desenvolver novos temas e, sobretudo, pelas questões que suscita na realização do poema.

É ele mesmo quem costuma assinalar, como característica de sua produção, o fato de que, sem que o busque deliberadamente, cada um de seus livros de poemas difere do outro, bem mais do que costuma ocorrer num mesmo autor. Faz questão de observar que não planeja seus livros de poemas, sendo eles, portanto, resultado da própria indagação poética e da reflexão sobre a vida e sobre seu trabalho de poeta. Segundo afirma, o seu poema nasce do 'espanto', quando depara-se com um aspecto inesperado do real e, a partir daí, vão se sucedendo os poemas, até que a motivação se esgote. Isso explica a recorrência de determinados temas, que, tempos depois, voltam a ganhar atualidade.

Nestes últimos anos, a obra de Gullar, já consagrada pela crítica e pelos leitores, foi distinguida com prêmios de alta significação na vida cultural, como o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e, este ano, com o Prêmio Camões, a mais alta distinção que se concede a escritores de língua portuguesa.

Ferreira Gullar foi também indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2002 e 2004.

"Orelha" do livro Em alguma parte alguma. de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, José Olympio, 2010.

***************************************************************

OFF PRICE

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                     fora de esquema
                     meu poema
inesperado

               e que eu possa
               cada vez mais desaprender
               de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


domingo, 17 de outubro de 2010


O DUPLO

Foi-se formando
a meu lado
                     um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
                               do que fiz
                      do que era meu

e pelo país
                     flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
            vejo-o passar
            com meu rosto

mas sem o peso
             do meu corpo
que sou eu
culpado e pouco

Ferreira Gullar


GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 38.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010



A Poesia

Pablo Neruda
 
E foi nessa idade… Chegou a poesia
à minha procura. Não sei, não sei de onde
saiu, de inverno ou de rio.
Não sei como nem quando,
não, não eram vocês, não eram
palavras, nem silêncio,
mas chamava-me de uma rua,
dos ramos da noite,
de repente de entre os outros,
entre fogos violentos
ou regressando sozinho,
ali estava sem rosto
e tocava-me.

Eu não sabia o que dizer, a minha boca
não sabia
nomear,
os meus olhos estavam cegos,
e algo começava na minha alma,
febre ou asas perdidas,
e fiz-me sozinho,
decifrando
aquela queimadura,
e escrevi a primeira linha vaga,
vaga, sem corpo, pura
tolice,
pura sabedoria
do que não sabe nada,
e vi de repente
o céu
desabrochado
e aberto,
planetas,
plantações palpitantes,
a sombra perfurada,
trespassada
por flechas, fogo e flores,
a noite sinuosa, o universo.

E eu, ser mínimo,
ébrio do grande vazio
estrelado,
semelhante, imagem
do mistério,
senti-me parte pura
do abismo,
rodei com as estrelas,
o meu coração libertou-se no vento.

Tradução de Gonçalo Figueiredo Augusto

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

 

Primavera na Serra

 Claridade quente da manhã vaidosa
O sol deve ter posto lente nova,
e clareou todas as manchas,
para esperdiçar luz.

Dez esquadrilhas de periquitos verdes
receberam ordem de partida,
deixando para as araras cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
pincelou no dorso de um camaleão.

E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada no cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
fatigada, talvez, de tanta erudição... 

João Guimarães Rosa 

Magma. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997, p. 141.
Foto: Portal Grande Sertão, inaugurado em junho/2010, na cidade de Cordisburgo/MG, onde nasceu Guimarães Rosa.