"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Receita de ano novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo,
remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo,
eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 28 de dezembro de 2010



La Danse - Henry Matisse, 1910.

ORGANIZA O NATAL

Carlos Drummond de Andrade

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Papai Noel às avessas

Carlos Drummond de Andrade


Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais
[lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidentes
brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos".

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cheio de Vazio



O vazio é um meio de transporte
Pra quem tem coração cheio
Cheio de vazios que transbordam
Seus sentidos pelo meio
Meio que circunda o infinito
Tão bonito de tão feio
Feio que ensina e que termina
Começando outro passeio

E lá do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

Amor é o nome que se dá
Quando se percebe o olhar alheio
Alheio a tudo que não for
Aquilo que está dentro do teu seio
Porque seio é o alimento
E ao mesmo tempo a fonte para o desbloqueio
E desbloqueio é quando aquele tal vazio
Se transforma em amor que veio

Lá do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

Do outro lado do céu
Alguém derrama num papel
Novos poemas de amor

O vazio é um meio de transporte
Pra quem tem coração cheio

Composição: Paulinho Moska
 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A outra

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um ao outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
Sãos que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem á a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra?

Bem sei, és bela, és quem desejo…
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar,
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!

Fernando Pessoa

KLIMT, Gustav. O beijo (1907-08).