"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 26 de março de 2010

Mais uma dose de Patativa...











AMANHÃ

Amanhã, ilusão doce e fagueira,
Linda rosa molhada pelo orvalho:
Amanhã, findarei o meu trabalho,
Amanhã, muito cedo, irei à feira.

Desta forma, na vida passageira,
Como aquele que vive do baralho,
Um espera a melhora no agasalho
E outro, a cura feliz de uma cegueira.

Com o belo amanhã que ilude a gente,
Cada qual anda alegre e sorridente,
Como quem vai atrás de um talismã.

Com o peito repleto de esperança,
Porém, nunca nós temos a lembrança
De que a morte também chega amanhã.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Continuando com Patativa...


VOCÊ SE LEMBRA?

À minha querida esposa BELINHA

Você se lembra de um feliz passado
E inda gravado está no coração?
No que nos deu uma alegria imensa,
A gente pensa e não se esquece não.

Daquela quadra eu faço ainda estudo
Relembro tudo e dou louvor a Deus,
Versos saudosos a minh’alma canta
Lagoa D’Anta dos prazeres meus

Faz muito tempo, mas eu relembro aquelas
Noites tão belas, bem enluaradas,
Você, repleta de vigor e graça,
Lavava massa pelas farinhadas.

Eu, rude bardo, uma paixão cantava
E lhe julgava nos meus doces cantos,
A camponesa minha preferida,
Para na vida consolar meus prantos.

Esperançosos fomos nos amando,
Ambos pensando em um feliz noivado,
Até que um dia o nosso lindo sonho
Sempre risonho foi realizado.

Cumprindo as juras com prazer infindo
Cantando e rindo pela vida afora
A gente via no conjugal ninho
Luz e carinho de uma nova aurora.

Trinta e seis anos nós assim vivemos
Exemplos demos de coração nobre,
Com paciência dentro da guarida
A nossa vida de família pobre.

Aos trinta e sete, que tristeza a nossa!
Deixei a roça com a gente vê
E conduzido pelo negro fado
Vivo afastado, longe de você.

Longe e saudoso neste meu retiro,
Triste suspiro do meu peito arranco.
E quero ainda no meu lar viver!
Eu quero ver o seu cabelo branco.

Querida esposa, guia do meu norte,
Vejo que a sorte veio contra mim;
Para quem tem um coração sensível,
É muito horrível padecer assim.

Guanabara-novembro/74.

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Vozes: Ceará, 1992, 8ª edição, p.163-64.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Filosofia de um trovador nordestino

Filósofo? Um trovador nordestino semi-analfabeto?

Bom, para os poetas “niversitáro, de rico vocabularo”, ele próprio já pediu licença, no poema Aos poetas clássicos, para cantar seu pensamento. Já para os filósofos de Academia, eu, mesmo sem conhecer de modo exaustivo a obra deste nordestino, confiro a mim o direito de pedir licença para também afirmar que se trata de um filósofo. Ainda que não tenha justificado metodologicamente sua sabedoria, agregando-lhe ares epistemológicos, a sensibilidade com que percebeu o ser humano e suas relações com o mundo é bastante para considerá-lo um autêntico amante da sabedoria, ou seja, um filósofo.

Falo de Antônio Gonçalves da Silva, o “Patativa do Assaré”, poeta sertanejo que conseguiu descrever, liricamente, “o prazê e o sofrimento” da vida no campo; denunciar, sem agredir, as desigualdades sociais e a corrupção; enaltecer valores como honradez, lealdade e disposição para o trabalho; enfim, falar de existência de modo simples e simultaneamente profundo.

O codinome já expressa o encanto de sua figura: Patativa é uma ave de canto suave e harmonioso, nativa da Chapada de Araripe, divisa entre o Ceará e Pernambuco; “Assaré” é por causa do local onde nasceu, sítio Serra de Santana, que “dista três léguas da cidade de Assaré”.
Difícil falar de Patativa do Assaré em breves linhas. Assim, deixo a tarefa pra ele mesmo, num breve recorte de sua autobiografia:

“(...) Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos, pois ficamos em completa pobreza. Com a idade de doze anos, freqüentei uma escola muito atrasada, na qual passei quatro meses, porém sem interromper muito o trabalho de agricultor. Saí da escola lendo o segundo livro de Felisberto de Carvalho e daquele tempo para cá não freqüentei mais escola nenhuma, porém sempre lidando com as letras, quando dispunha de tempo para este fim. Desde muito criança que sou apaixonado pela poesia, onde alguém lia versos, eu tinha que demorar pra ouvi-los. (...) Com dezesseis anos de idade, comprei uma viola e comecei a cantar de improviso, pois naquele tempo eu já improvisava, glosando os motes que os interessados me apresentavam. (...) Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua fora do programa da verdadeira democracia. Nasci a 5 de março de 1909. Perdi a vista direita, no período da dentição, em conseqüência da moléstia vulgarmente conhecida por Dor-d’olhos. Desde que comecei a trabalhar na agricultura, até hoje, nunca passei um ano sem botar a minha roçazinha, só não plantei roça, no ano em que fui ao Pará [cinco meses].” Antônio Gonçalves da Silva (p. 15-6)

Patativa do Assaré foi casado com Belinha, com quem teve nove filhos. Faleceu na mesma cidade onde nasceu, em 8 de julho de 2002, aos 93 anos, completamente lúcido e capaz de recitar qualquer um de seus versos. Nunca deixou de ser agricultor, sempre tendo dito que não faria, como não fez, de sua arte uma profissão.

Do pouco que sei, digo que a riqueza de sua obra - que mescla sertão e poesia, música e filosofia, religião, militância, lirismo, sentimento e razão... escrita e cantada no rude linguajar da gente sertaneja, esse povo que, com liberdade e natural desenvoltura sabe expressar sua sabedoria - precisa ser difundida, muito divulgada, mesmo! Ainda pouco conhecido pelo seu povo, o Poeta vem sendo reconhecido, pelo meio acadêmico, como um "monstro sagrado" da cultura popular brasileira. Já recebeu inúmeros prêmios, homenagens, foi nomeado, por cinco vezes, Doutor Honoris Causa. A complexidade e arranjo estético de sua poesia atraem a atenção de estudiosos do mundo inteiro. Tenha-se por exemplo a Universidade de Sorbone, que estuda a vida e obra de Patativa do Assaré, na Cadeira de Literatura Universal, sob a regência do Professor Raymond Cantel, desde a década de 80. Entretanto, isso tudo de nada valerá se a riqueza da obra e genialidade do autor não forem alcançados pelos verdadeiros destinatários do suave e harmonioso canto de Patativa, o povo.

Durante esta semana vou postar alguns versos escritos pelo poeta, que garantiu "sê fié e não instruí papé com poesia sem rima.", como no seguinte trecho do poema Aos poetas clássicos:

“(...)
Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulo sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me desanima
(...)”

FONTES:

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Vozes: Ceará, 1992. 8ª edição.
Site da Revista Agulha, acessado em 22.3.2010, http://www.revista.agulha.nom.br/anton.html

quarta-feira, 17 de março de 2010

A morena de angola conseguiu!!!


A mineira Clara Francisca Gonçalves – ou Clara Nunes – desde a infância sonhava ser cantora, e das famosas; como Dalva de Oliveira ou Elizeth Cardoso. Nascida em 1942, numa família pobre, no município de Cedro – hoje Caetanópolis, subdistrito de Paraopeba – a caçula de sete irmãos teve como primeira referência musical o próprio pai, operário da fábrica de tecidos da região, era também congadeiro, violeiro e organizador da Folia de Reis.

Clara Nunes perdeu os pais ainda criança, quando passou a viver sob os cuidados do casal de irmãos mais velhos. Ao 15 anos, nova tragédia marca a vida da jovem: o irmão mais velho, em defesa da honra da irmã, mata o namorado desta, que estaria espalhando infâmias sobre Clara, pela cidade.

Mal vista pela sociedade, com o irmão foragido da polícia, ela vai morar em Belo Horizonte, na companhia de uma tia. Na capital, passa a integrar o coral de uma igreja, participa do concurso nacional A voz de Ouro ABC, ficando em terceiro lugar. A partir daí, as oportunidades vão surgindo e a carreira de Clara Nunes começa a deslanchar, o que a leva a mudar-se para o Rio de Janeiro.

Consagrada como uma cantora genuinamente brasileira, Clara Nunes recupera as raízes tradicionais da música por meio do samba e das vertentes afros, nas quais quanto mais se aprofundava se enveredava pelos caminhos da religião.

Na mesma época, Vinícius de Moraes descobre o candomblé e passa a se considerar “o branco mais preto do Brasil”, o que, inevitavelmente, propiciou um abençoado encontro entre esses artistas, que contou com a participação de Toquinho, no show Poeta, Moça e Violão.

Numa fase posterior, mais madura, a música cantada por Clara Nunes já procurava retratar um pouco das três raças que formavam o povo brasileiro. A preservação da memória musical e a dignidade que poderia ser conferida ao povo por meio da música foram ficando cada vez mais fortes em suas escolhas. Nessa época, Clara participou, também, de diversos eventos com fundo político.

A figura emblemática de Clara Nunes marcou a história da música popular brasileira como a mulher que soube celebrar, através do canto, a eclética identidade de um povo.

Pra ilustrar, nada melhor que um presente feito pelo lindo do Chico especialmente para a linda da Clara: a canção Morena de Angola.

"(...)
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Será que ela tá na cozinha guisando a galinha à cabidela
Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela
Será que no meio da mata, na moita, a morena inda chocalha
Será que ela não fica afoita pra dançar na chama da batalha.
(...)"

FONTE:
Revista Vida Simples, edição n° 63, de fevereiro de 2008, pp. 42-47.

 

sábado, 13 de março de 2010

A homenagem dele não poderia faltar!


Bom, fechando esta semana de comemorações - se é que há data pra começar ou terminar de comemorar o que quer que seja - eu não poderia deixar de transmitir o recado que o poetinha me pediu.

Vinícius, como todos já sabem, aquele que escurecia pela manhã e à noite ardia; cidadão do mundo, venerava as mulheres (Todas!), amava os amigos, relacionava-se intimamente com o uísque, poeta irrepreensível, letrista, crítico eventual de cinema, não abria mão de sua banheira, boêmio incansável, divertido, enfim... O que quase ninguém sabe é da nossa amizade! Desde o dia em que nos conhecemos sentimos instantaneamente uma pueril afinidade, tão límpida, doce; ele me disse palavras tão graciosas, e eu pra ele... Não me lembro muito bem quando isso tudo aconteceu, só sinto que foi um encontro pra nunca mais nos desencontrarmos. Nossa necessidade de sermos amigos foi tanta que transcendeu tempo e espaço. Assim, é fato irrelevante sua alma ter subido ao céu no ano de 1980 e a minha descido à Terra em 1982. Adoro ouvi-lo, ele me entende, me faz rir, me inspira, bebemos juntos, ouvimos música, e tudo o mais a que uma amizade tem direito. Quem não acredita?
Voltando ao recado:

"(...) É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram.

E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse danos; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas."
Trecho de O amor por entre o verde. MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Coleção Folha de São Paulo, 2008. P. 48-50.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Mais um dia de homenagem!


E mais um poeta que se curva em respeito ao ser feminino, representado, nessa postagem, por uma mulher chamada Flora Tristán.









... El nivel de civilización a que han llegado diversas sociedades humanas está en proporción a la independencia que gozan las mujeres...”, Flora Tristán.

Flora Tristán nasceu em Paris, em 7 de abril de 1803, filha de um coronel Peruano oriundo de Arequipa, Mariano Tristán y Moscoso e de uma plebéia francesa chamada Teresa Laisney. Aos dezessete anos, numa época de pobreza enfrentada pela família e devido a pressões maternas, Flora se casa com o dono da oficina de litografia onde trabalhava, André Chazal, com quem teve dois filhos e uma filha, Aline, que viria a ser a mãe do famoso pintor francês, Paul Gauguin.

A história de Flora Tristán é marcada por atitudes audazes, revolucionárias, por sua busca incansável em prol da liberdade feminina e sua igualdade perante o homem. Pouco conhecidas no Brasil, suas idéias e exemplos foram valiosos estímulos para o despontar do feminismo moderno.

A primeira grande ousadia de Flora foi fugir da casa do marido, motivada pelo sofrimento cotidiano impingido por Chazal, com quem matinha uma relação marcada por agressões, estupros, privações, dentre outras humilhações e limitações. A partir disso, ela viaja por vários países à procura de trabalho, época em que vê reforçada sua condição de excluída. Decide, então, viajar para o Peru, a fim de reclamar a herança paterna a que acredita ter direito.

Após oito meses de estadia em terras latinas, Flora retorna para a Europa, trazendo consigo a sensação de fracasso, que por ela foi assim manifestado: “Vine a buscar un lugar legítimo en el seno de una familia y de una nación... pero trás ocho meses de ser tratada como una extraña en la casa de mis tíos era evidente que no había ganado ningún estatus dentro de mi família paterna...” Sua obra Peregrinaciones de una Paria é fruto das experiências vividas nesse período. Em 1835, publica seu primeiro folheto, dedicado à situação das mulheres estrangeiras pobres na França; em 1837, sai o segundo, em prol do divórcio.

Flora nunca deixou de ser perseguida pelo marido, de quem se livrou apenas quando preso por tentar matá-la. Flora parte também para uma acirrada luta na justiça pela custódia dos filhos, a qual levaria 12 anos.

Mesmo vivendo em situação duplamente ilegítima – concebida fora do matrimônio e separada do marido num país que não reconhecia o divórcio – Flora permaneceu engajada em seu compromisso ativo com as lutas sociais da época: primeiramente, pela emancipação da mulher e da classe operária, estendo, a posteriori, sua luta também contra a pena de morte, o obscurantismo religioso e a escravidão.

Flora Tristán morre em 1844, pouco depois de publicar as duas obras que marcaram sua maturidade intelectual e política: A União Operária, em 1843; e A Emancipação da Mulher, livro inédito até 1846. Foi a primeira a proclamar “¡Trabajadores del mundo, uníos”. Sua morte provoca muita emoção na região da Gironda - Gironde em francês, departamento localizado no sudoeste do país, na região da Aquitânia - e seu sepultamento é seguido por intelectuais e por uma multidão de operários.


FONTES:
LLOSA, Mario Vargas. O Paraíso na Outra Esquina - novela histórica sobre Paul Gauguin y Flora Tristán. 2003.
http://www.flora.org.pe/ - Site peruano que difunde e promove os direitos da mulher.

Indicação de livro indicado... vale a pena conferir!


Essa é a capa do livro O Paraíso na Outra Esquina, que narra, com ares de ficção, conturbados eventos que marcaram a vida do famoso pintor francês, Paul Gauguin, e de sua avó materna, a revolucionária Flora Tristán, dois personagens movidos pela revolta e utopia.

A obra - escrita por Mario Vargas Llosa (Arequipa/Peru), um dos maiores escritores de língua espanhola, reconhecido, mundialmente, como romancista, jornalista, ensaista e político - retrata a busca incansável dos protagonistas pela felicidade (o Paraíso) aqui na Terra (ali na esquina). As histórias são narradas paralelamente dando a impressão de que são dois livros em um, mas é possível perceber que há algumas amarras, não só o laço sanguíneo que une os protagonistas, mas também a utopia que governa suas vidas e o intenso sofrimento que as acompanha.

Na concepção de Flora Tristán, o ideal de felicidade é representado pela emancipação femininina, enquanto para Paul Gauguin essa tal felicidade só poderia ser encontrada num lugar longe da civilização e dos valores materiais, onde ele encontraria, também e finalmente, sua energia criativa vital.

Bom, pra mim, uma jóia de livro, o retrato de uma corajosa mulher, pioneira na luta pela liberdade e igualdade entre homens e mulheres; e de um homem em busca de si mesmo, mais precisamente em busca de um paraíso próprio onde seria possível encontrar-se.

Obs: A tela, pintada por Gauguin, chama-se De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?

terça-feira, 9 de março de 2010

Dando continuidade às comemorações...

Meninas, eu - que sou uma pessoa bacana - resolvi compartilhar com vocês a letra da música que Chico cantou pra mim, ontem à noite, quando comemorávamos o Dia Internacional das Mulheres. Aproveitem, porque não é sempre que faço essas gracinhas - kkkkk *Obs.: Olha a sintonia, eu e Chico, ambos de Holanda, com a mãozinha direita no queixo! Que amor!!! :-)

Mulher, vou dizer quanto eu te amo

Composição: Chico Buarque
Mulher, vou dizer quanto eu te amo
Cantando a flor
Que nós plantamos
Que veio a tempo
Nesse tempo que carece
Dum carinho, duma prece
Dum sorriso, dum encanto
Mulher, imagina o nosso espanto
Ao ver a flor
Que cresceu tanto
Pois no silêncio mentiroso
Tão zeloso dos enganos
Há de ser pura
Como o grito mais profano
Como a graça do perdão
E que ela faça vir o dia
Dia a dia mais feliz
E seja da alegria
Sempre uma aprendiz
Eu te repito
Este meu canto de louvor
Ao fruto mais bendito
Desse nosso amor

segunda-feira, 8 de março de 2010

PARA NÓS, MULHERES, UMA SALVA DE PALMAS!!!


O Lado Quente do Ser
Maria Bethânia
Composição: Marina Lima - Antônio Cícero


Eu gosto de ser mulher
Sonhar arder de amor
Desde que sou uma menina
De ser feliz ou sofrer
Com quem eu faça calor
Esse querer me ilumina
E eu não quero amor nada de menos
Dispense os jogos desses mais ou menos
Pra que pequenos vícios
Se o amor são fogos que se acendem
Sem artifícios
Eu já quis ser bailarina
São coisas que não esqueço
E continuo ainda a sê-la
Minha vida me alucina
É como um filme que faço
Mas faço melhor ainda
Do que as estrelas
Então eu digo amor, chegue mais perto
E prove ao certo qual é o meu sabor
Ouça meu peito agora
Venha compor uma trilha sonora para o amor
Eu gosto de ser mulher
Que mostra mais o que sente
O lado quente do ser
Que canta mais docemente


Assista em:
http://www.youtube.com/watch?v=eZqQx90tyPE

quarta-feira, 3 de março de 2010

Consciência do inacabamento

"Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu 'destino' não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade."
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 52.

terça-feira, 2 de março de 2010

Elegia ao Primeiro Amigo (Vinícius de Moraes)


Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.
Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Ou nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-Ia, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.

Rio de Janeiro, 1943.