"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

Pesquisar este blog

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"Hoje quero falar da tristeza. Não me pergunte por quê, pois eu mesmo não sei. A tristeza não pede licença, não se explica... Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora. Ficam belas-tristes as nuvens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores, belos-tristes os objetos silenciosos do meu escrítório, e até mesmo o café da manhã fica triste-belo... A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento que se tem ante uma beleza que se perdeu...

Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei no Grupo, o poeta visitando paisagens de outros tempos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. "São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou..." Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que tristeza é isto: estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber que, cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. A tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. "Quem nos desviou assim", perguntava Rilke, "para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?" Não esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meirelles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: "Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se..." Tristeza é isto, quando o belo e a despedida coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tornaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo.

"E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr-do-sol... E estamos perdidos de novo..." (E. Browining). Mas, que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr-do-sol: "Tudo o que está próximo se distancia". Ao que Borges comenta: "Goethe se referia ao crepúsculo, mas também à vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando". O pôr-do-sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belos em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nosso adeus.

A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. "As nuvens à volta do sol que se põe", dizia Wordsworth, "ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens..." E assim, os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio "pedaço arrancado de mim", mutilação do meu corpo. Exercício de saudade; tornar de novo presente um passado que já se foi. "Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu..."

Lembro-me de Álvaro de Campos dizendo da dor que sentia ao ver os navios que se afastavam do cais. " Ah! Todo cais é uma saudade de pedra... Todo atracar, todo largar de navio é - sinto-o em mim como meu sangue - inconscientemente simbólico, terrivelmente ameaçador de significações metafísicas. E, quando o navio larga do cais e se repara de repente que se abriu um espaço entre o cais e o navio, vem-me uma névoa de sentimentos de tristeza que me envolve com uma recordação de uma outra pessoa que fosse misteriosamente minha..."

E é só agora Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema "Ausência", onde você afirma não lastimar o espaço vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida, ferida que não se deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. "Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não o lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim..." Não é estranho isto, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar.

Brinco com a minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel..."

Rubem Alves.

3 comentários:

Wilton disse...

"...É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar."
Lindo texto do Rubem Alves.
Lindo post.
Um abraço.

Danielle Martins disse...

Tristeza não tem fim... felicidade sim...
Abraços!

TEREZA QOSQO disse...

Obrigada pelas visitas e comentários! Fico feliz em vê-los por aqui! Grande abraço!