"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O triunfo da morte no Rio


O triunfo da morte (1562) - Pieter Brueghel

A INCONSTITUCIONAL TRAGÉDIA DO RIO
 
“Minha alma canta/Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar/Praia sem fim
Rio, você foi feito pra...”
(Tom Jobim)

 "É fácil por a culpa da tragédia do Rio em quem vai morar perigosamente nas encostas dos morros. É difícil imaginar-se na situação de quem não tem onde morar e tem de construir nos barrancos seus improvisos de casa. É fácil por a culpa no governo por não adotar medidas preventivas contra a tragédia. É difícil ser governo e ter que administrar o espólio da falta de planejamento urbano e irresponsabilidades acumuladas por gestões anteriores. Prevenir as tragédias não dá votos. Impedir que sem-tetos e construtoras inescrupulosas ocupem áreas de risco, tira votos. E a democracia, na prática política, não é mais do que ume engenharia eleitoreira.

Quer saber? Há leis e papeis bastantes para evitar ou, pelo menos, para reduzir os danos causados pelas enchentes e desmoronamentos de encostas. Anos sim e outros também. Talvez você não saiba, mas existe um sistema nacional de defesa civil, integrado por vários órgãos de todos os entes federativos, sob a coordenação de uma secretaria do Ministério da Integração Nacional, chamada de Sedec. No âmbito dos Municípios, existe a Comdec, uma coordenaria especializada em defesa civil. Sabe qual o objetivo da “defesa civil”? Reduzir a ocorrência e o impacto de desastres, por meio de ações de prevenção, de preparação para emergências e de resposta adequadas a suas ocorrências.

A organização do sistema é recente, data de 2 de julho de 2010, com a edição da medida provisória 494. Mas já havia disposições legais há tempo. Embora com raízes mais antigas, como a Diretoria Nacional do Serviço da Defesa Civil de 1943, somente após os estragos causados pelas grandes enchentes que ocorreram no Sudeste em 1966, passou-se a levar o assunto mais a sério com a organização da primeira “Defesa Civil Estadual do Brasil”. Onde? No antigo Estado da Guanabara, hoje, Rio de Janeiro. Em 1969, foi editado o Decreto-Lei n. 950, criando o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) e prevendo um plano nacional de defesa permanente. Na verdade, somente em 1988, criou-se um sistema nacional de defesa civil com propósitos mais assentados de planejamento e coordenação contra eventos e catástrofes. Para não ficar somente no tema específico da defesa civil, recordo-me do Estatuto das Cidades, Lei 10257/2001, que é uma obra-prima de normas para adoção de políticas urbanas sustentáveis.

Não pare ainda por causa dessa citação de leis. A própria Constituição de 1988 prevê, em diversos artigos, ações relativas à defesa civil (arts. 22, XXVII, e 144, § 5º) e ao adequado ordenamento territorial, ao planejamento e ao controle do uso do solo (arts. 21, IX, XVIII;. 25, § 3º;. 30, VIII e 182, § 1º) Destacaria dois deles que nos oferecem a noção do todo: Cabe à União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (art. 21; XVIII). É tarefa municipal (eis o segundo destaque) promover a política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182).

O volume de chuva é inconstitucional, vejo dizer uma autoridade. Pobre papel décor que recebe de tudo, por tudo e em nome de tudo. Tinta não lhe falta, todavia. Tintas de vergonha mais do que de prescrição. Na verdade, o que sobra de água no Rio falta de vontade política para efetivar uma política decente (constitucional) de uso e ocupação do solo, sem descaso, sem tentações eleitoreiras ou patrimoniais. A ganância de alguns políticos (e seus comparsas privados) é que é inconstitucional; a incompetência é inconstitucional; as mortes são inconstitucionais; a tragédia anunciada, por tudo, por todos, por nós que não sabemos fazer bem política e, com ela, os políticos, é desgraçadamente inconstitucional. É fácil ser governo assim; é difícil ser povo soterrado."

José Adércio, em 18.1.2011

Um comentário:

Danielle Martins disse...

"difícil ser povo soterrado", difícil ver, ler, saber... solidária com a dor...