"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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terça-feira, 20 de abril de 2010

Soneto da buquinagem

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
angras do mar dos livros, onde bebo.

— Álcool mais absoluto — alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gêbo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo.

Nosso papel, velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.


Os sebos também encantaram Carlos Drummond de Andrade. Os versos desse soneto, de autoria do literato mineiro, revelam bem o seu amor pela poesia, poeta e livros velhos.

Buquinar: verbo intransitivo que significa “buscar e comprar livros usados em livrarias, bancas, sebos, alfarrabistas”. Palavra de origem francesa, presente na língua portuguesa desde o século XX, cuja etimologia está associada a bouquiner, bouquin – “livro antigo, pequeno livro”, conforme definição dada pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Essa pequena grande composição poética é um tributo aos garimpeiros, mestres na arte da buquinagem – ou garimpagem –, sujeitos que encontram antigos tesouros onde a maioria das pessoas vê pouca ou nenhuma importância.

Sebo, casa de alfarrábio e caga-sebo são alguns dos nomes dados às livrarias que comercializam livros usados. Há quem prefira “casa de alfarrábio” por considerar que a expressão “sebo“ é depreciativa. Preferem ser chamados alfarrabistas a sebistas, já que sebo é sujeita, porcaria.

Há outros, porém, como o falecido Amadeu Rossi Cocco, ou melhor, Seu Amadeu – fundador do sebo com mais tempo de atividade no mercado livreiro de Belo Horizonte (desde 1948) –, que são capazes de perceber a poesia da expressão “sebo” tal como Drummond, que convidou a amiga para, juntos, buquinarem à luz de velas. Seu Amadeu também gostava da meia luz:

Tenho saudade é do tempo em que sebo era sebo mesmo, quando não havia luz elétrica e as pessoas usavam aquelas velas grandes para as leituras noturnas. De tanto o povo ver pingando aqueles resíduos das velas, pôs o nome de sebo.”

Seu Amadeu faleceu em 9 de abril de 2009, aos 92 anos. A próxima postagem será sobre este que é um dos mais conhecidos ícones de Belo Horizonte.

FONTES:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p. 977.
DELGADO, Márcia Cristina Delgado. Cartografia sentimental de sebos e livros. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
 

4 comentários:

Emilene Lopes disse...

Lindo soneto...
Tudo a luz de velas é lindo...rs
Bjs
Mila

Mariana disse...

Lindo o poema e a homenagem que Drummond presta a esta forma de "leitura antiga". Menciona o Villon, que por acaso era volta e meia citado pelo Oséias, proprietário da Crisálida (e editor), e que nutria um gosto todo especial por essa poesia antiga. Os livros da Crisálida estão entre os mais bem acondicionados que já vi em um sebo, mas os preços...

Abraços!

TEREZA QOSQO disse...

E olha que ganho: foi através desse poema que Drummond me apresentou o Villon. Até então sequer tinha ouvido falar sobre a figura, cuja história é interessantíssima, por sinal. Legal isso, né?!

Mariana disse...

Sim, a história dele é fantástica, e o Candido tem um texto lindo sobre ele, só não me lembro agora onde está...