"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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sexta-feira, 8 de outubro de 2010



A Poesia

Pablo Neruda
 
E foi nessa idade… Chegou a poesia
à minha procura. Não sei, não sei de onde
saiu, de inverno ou de rio.
Não sei como nem quando,
não, não eram vocês, não eram
palavras, nem silêncio,
mas chamava-me de uma rua,
dos ramos da noite,
de repente de entre os outros,
entre fogos violentos
ou regressando sozinho,
ali estava sem rosto
e tocava-me.

Eu não sabia o que dizer, a minha boca
não sabia
nomear,
os meus olhos estavam cegos,
e algo começava na minha alma,
febre ou asas perdidas,
e fiz-me sozinho,
decifrando
aquela queimadura,
e escrevi a primeira linha vaga,
vaga, sem corpo, pura
tolice,
pura sabedoria
do que não sabe nada,
e vi de repente
o céu
desabrochado
e aberto,
planetas,
plantações palpitantes,
a sombra perfurada,
trespassada
por flechas, fogo e flores,
a noite sinuosa, o universo.

E eu, ser mínimo,
ébrio do grande vazio
estrelado,
semelhante, imagem
do mistério,
senti-me parte pura
do abismo,
rodei com as estrelas,
o meu coração libertou-se no vento.

Tradução de Gonçalo Figueiredo Augusto

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