"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

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domingo, 12 de setembro de 2010

Notícia da vida


 Por Darcy Damasceno

       Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Rio Comprido, no dia 7 de novembro de 1901, e na mesma cidade faleceu, em 9 de novembro de 1964. Aos três anos de idade, já perdera os pais e três irmãos que não chegou a conhecer. Criada pela avó materna, habituou-se desde a infância ao exercício da solidão, e as circunstâncias dramáticas que lhe envolveram os primeiros tempos de vida foram em grande parte causadoras do precoce desenvolvimento de sua consciência e do afinamento de sua sensibilidade.
       Essa avó – Jacinta Garcia Benevides –, cujo nome Cecília deixou inscrito numa belíssima “Elegia” de Mar absoluto e outros poemas, exerceu sobre a criança extraordinária influência. Em vários lugares deixou a poetisa declarados o afeto e a admiração que lhe despertara aquela ilhoa rude e simples como os dons da terra. “O que há de mais terno em mim, de mais profundo e autêntico, é, sem dúvida, o que herdei da minha avó, açoriana de São Miguel”, confidência em carta a um amigo. E revelou numa entrevista a Pedro Bloch, para a revista “Manchete”:
       – Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: “Por quem você está rezando?” “Por todas as pessoas que sofrem!” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.
       Por outro lado, envolve-se numa névoa lendária a figura do avô materno, a quem também Cecília não conheceu, mas de quem fez comovida evocação: um homem de cepa antiga, que jamais se deixara fotografar, “para que não morresse”. Esse avô, cuja figura apenas imaginada por coisas de ouvir dizer se fixaria tão emocionadamente em sua alma, esse avô não teria sequer nome em papéis: as notícias respeitantes à biografia de Cecília e por ela mesma fornecidas passaram sempre da designação dos avós paternos – sem expressão afetiva em sua vida – para a avó Jacinta. Era como se se prolongasse a magia daquele ser, calando-se-lhe o nome.
       A infância de orfandade deu a Cecília, conforme a escritora mesma declarou mais de uma vez, duas coisas que parecem negativas, mas que para ela foram sempre positivas: silêncio e solidão. Nessa área e sob esse clima desenvolveu-se toda a sua vida e a sua arte.
       Estudante da antiga Escola Normal, onde se tornou professora em 1917, distingui-se como aluna exemplar, merecendo a estima de mestres como Alfredo Gomes, Basílio de Magalhães e outros. Ingressou então no magistério primário, mas desdobrou também sua atividade noutros numerosos campos: o jornalismo, a pedagogia, o folclore – tudo a par, sempre, da criação literária. Empolgada pelos problemas educacionais, participou ativamente das campanhas renovadoras do ensino, antes e depois da Revolução de 30. Em 1935 era nomeada professora de literatura luso-brasileira da recém-fundamentada da Universidade do Distrito Federal.
       De grande significação na sua vida foram as viagens. Elas começaram em 1934 com breve visita a Portugal, onde reencontrou as raízes do sangue e da herança cultural; continuaram; continuaram em 1940 (Estados Unidos e México) e, depois, em diferentes oportunidades, conheceu o Uruguai, a Argentina, a Espanha, a Índia, Israel, Itália, Holanda, França, etc., extraindo do contato com gentes, costumes e idiomas matéria de melhor compreensão da vida da humanidade. Nenhuma região, entretanto, imprimiu-se-lhe na sensibilidade como a Índia, para cuja cultura se voltara Cecília desde a adolescência e de cujo pensamento filosófico se aproximara através dos anos.
       Cecília Meireles casou-se duas vezes: a primeira (em 1922) com o artista português Fernando Correia Dias; a segunda (em 1940) com o agrônomo Heitor Grillo. São do primeiro matrimonio as três filhas que deixou.

Rio de Janeiro, 1972.

Fonte: Cecília Meireles: seleta em prosa e verso. Seleção, notas e apresentação de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1975.

Beira-Mar

Sou moradora das areias
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias
como os peixinhos nos rios...

Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar – e mais nada.

Cecília Meireles

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