Adélia Prado
Uma noite me dei conta de que possuía uma história,
contínua, desde o meu nascimento indesligável de mim.
e de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes,
modos de voz e gesto repetindo-se.
Até os dons, um certo comum apelo ao religioso
e que tudo pesava. E desejei ser outro.
Minha mãe não tinha letras.
Meu pai freqüentou um Ginásio por três dias
de proveitoso retiro espiritual.
Tive um mundo grandíssimo a explorar:
“demagogia, o que é mesmo que essa palavra é?”
Abismos de maravilha oferecidos em sermões triunfantes:
“Tota pulchra est Maria!”
Só quadros religiosos nas paredes.
Só um lugar aonde ir
- e já existiam Nova Iorque, Roma!-
Tanta coisa eu julguei inventar,
minha vida e paixão,
minha própria morte,
esta tristeza endócrina resolvida a jaculatórias pungentes,
observações sobre o tempo. Aprendi a suspirar.
A poesia é tão triste!
O que é bonito enche os olhos de lágrimas.
Tenho tanta saudade dos meus mortos!
Estou tão feliz! À beira do ridículo
arde meu peito em brasas de paixão.
Vinte anos de menos, só seria mais jovem.
Nunca, mais amorável.
Já desejei ser outro.
Não desejo mais não.
(Terra de Santa Cruz, 1986)
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