"Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados. - E eu não sei? Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados." Afonso Romano de Sant'Anna

"... acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante." Cecília Meireles

Pesquisar este blog

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Olhai para os que sofrem...


Foto: fonte desconhecida
A alma de Tom canta, lá de cima ele vê o Rio de Janeiro, morre de saudades, mas não consegue acreditar no que diz o Sr. Jorge Mário da Silva, seu conterrâneo. Perguntado sobre como andavam as coisas do lado de cá da existência, Seu Jorge respondeu, num canto choroso:

- Não vai nada bem, não vai nada bem!

Ninguém havia se suicidado, como Chatterton, mas na história que o estava entristecendo havia choro e “Sangue! Sangue! Sangue!”.

– Tom - disse Seu Jorge -, estamos em silêncio, de luto, o Rio de Janeiro não está mais lindo, nem nada de maravilhoso está acontecendo por aqui. Pelo contrário, caro amigo, nossa cidade e seus filhos foram arrasados pela maior chuva registrada até hoje.

Jorge Mário quis continuar a falar, mas o pranto embargou sua voz. A tragédia carioca trazia lembranças de uma triste fase que pertubou a juventude do artista. Vitório, seu irmão, foi morto numa chacina que desuniu os famíliares. Nessa época, o jovem passa à condição de sem-teto, mas a roda viva acabou carregando seu destino para outro lado: Jorge se abriga, por três anos, no teatro da UERJ (Universidade do Rio de Janeiro), onde se apaixona definitivamente pela arte, pela música, e encontra o lugar de onde não mais desceu: os palcos. Mas hoje sequer a música conseguia luzir aquele olhar enternecido.

Alguém bate à porta. Era Vinícius, corpo em desalinho, amargurado, com uma garrafa de uísque em punho e um jornal debaixo do braço. Ele, que nascera, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro, de 1913, na cidade maravilha mutante, não gostava de dias nublados, mas sempre soube que a tristeza não tem fim. Mostrou o jornal, notícia estava lá, na primeira página: “A chuva que castiga o Rio de Janeiro deixou pelo menos 220 mortos, centenas de feridos, alagou ruas, causou deslizamentos e destruição no Estado. É o maior índice de chuvas na cidade desde que começou a medição, há mais de 40 anos.”. O poetinha se calou e tragou mais um gole do amigo que repousava na garrafa.

Não demorou pra que chegasse Nelson Cavaquinho, que passou a beber junto aos amigos. Logo depois, o moço da Vila, Noel, e Cartola também chegaram. Os sambistas, que não estavam por dentro das notícias, apresentaram-se animados, ansiosos para ouvir aquele samba que Tom fizera só porque "Rio eu gosto de você”. Em verdade, queriam mesmo era ver a morena dançar, seu corpo todo balançar.

Mas Nelson Cavaquinho, de luto, foi logo dizendo:

- Respeite a minha dor
Não cante agora
...
Eu também já fui feliz
Até que um dia
O luto envolveu minha alegria.

Irineu de Almeida, o mestre Pixinguinha, só fazia soprar sua flauta, em perfeita sintonia com a melancolia que tomava conta das cidades e das pessoas. Sentia que não havia o que ser dito, pois era incapaz de compreender a dimensão da dor das vítimas. Preferiu o silência ao alarde.

Ao contrário do calar de sua voz, de hora em hora, repórteres armados de microfones, holofotes de emissoras de televisão e os flashs das máquinas fotográficas expunham ao público o desespero daqueles que haviam perdido sua casas, bens e, principalmente, as pessoas que amam. A todo momento buscavam depoimentos de dor e de glória, para que os fatos configurassem verdadeira tragédia. Via-se que a imprensa não pretendia apenas noticiar, mas utilizar tudo aquilo na disputa pelos níveis de audiência. Diante desse caos, Fernanda Abreu foi-se embora. Não queria saber do submundo da TV.

Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, abraçou um de seus ídolos, conterrâneo e xará, Angenor de Oliveira, o Cartola, e juntos choraram por ver a cidade perdida; mas logo em seguida sorriram com batidas de esperanças no coração, pois já estava terminado o verão. Ao fim daquela tempestade o sol nasceria de novo e, com o tempo, os cariocas – espertos e alegres, que já nascem bambas e craques, pelo canto da gaúcha Adriana Calcanhoto – reconstruiriam suas vidas.

Mas Tom continuava pensando nas águas de março que prometem vida aos corações quando fecha o verão...

O tempo nublado tudo acinzentava e os impedia de ver, da janela, o Corcovado e o lindo Redentor, de braços abertos sobre a Guanabara. Olhos nos olhos, todos, de mãos dadas, fizeram uma prece pra Deus, Nosso Senhor, pra chuva parar de molhar aquela terra de gentes inocentes.

Nessa hora, Jorge Ben inverteu o verso e pediu à chuva que parasse de chover sem parar:

- Por favor, chuva ruim, não molhe mais estas cidades assim.

E Tom passou a crer que não era o fundo do poço, nem o fim do caminho. As promessas de vida ainda haviam de ser cumpridas.

Heitor Villa-Lobos foi o último chegar. Este filho do Rio, em afinada desarmonia com a dor que flutuava sobre a cidade, disse calmamente aos amigos:

– Não se isolem. Não sejam indiferentes à dor alheia. Não se conformem. Dias como este servem, também, para reaproximar pessoas e, a partir deste sentimento solidário de dor, reconciliá-las com o efêmero. Distantes de nossas certezas e seguranças, continuaremos nossa caminhada, juntos e irresolutos diante dos mistérios da existência.

Todos ouviram atentos às palavras de Villa-Lobos, e estes Cariocas, amantes de seu povo e de sua terra natal, permaneceram ali, lutuosos, a beber e a cantar ...

É de se compreender, afinal “Cariocas não gostam de dias nublados”.

Nenhum comentário: